terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O Serrano.

O serrano era pai de cinco filhos e duas filhas, e vivia numa aldeia na serra, uma aldeia pequena e sombria  feita de pedra de xisto.
A família do serrano já vivia ali há muitas gerações. Pois já a mãe, o pai e os avós do serrano ali tinham nascido. A aldeia onde o serrano vivia era constituída nem mais nem menos, por umas vinte e poucas casas e por alguns palheiros, palheiros esses, que geralmente eram juntos ás casas. As casas eram todas ou quase todas juntas umas ás outras. Pequenas na sua maioria e constituídas por uma cozinha grande com  forno e um quarto ou dois que se situavam ao lado da cozinha. Abaixo da casa,  ficavam as lojas, (lojas em linguagem corrente), eram considerados os compartimentos que serviam de abrigo aos animais que ali dormiam, aquecendo assim as casas nas noites frias de inverno.
A serra era fria, quase gelada. No inverno, as mulheres quando iam lavar a roupa ao tanque, que se situava na eira, partiam o gelo podendo só assim desta forma obter água que usavam para lavar roupa e outras coisas necessárias ao dia a dia na serra. Nessa altura, (estamos a falar do ano de mil novecentos e trinta e seis) o vestuário dos homens, era simples e rudimentar. Constituído muitas vezes por uma capa feita de palha, que usavam por cima da samarra, protegendo-os assim da geada, do frio e do vento. As mulheres, essas, tal como os homens, quase sempre vestidas de negro, usavam quase todas, independente da idade, um lenço na cabeça e um xaile a cobrir-lhes a roupa. A vida na serra era difícil, porque a montanha era íngreme agreste e rochosa,  não havia transporte, e os acessos eram complicados, pois todos os caminhos eram quase todos cobertos por pedra ou terra batida. As crianças para se deslocarem á escola que se situava numa aldeia próxima, tinham que caminhar todos os dias, uma média de seis quilómetros.
Em sábados de manhã, os serranos desciam a serra em grupos de seis ou dez homens, desciam a serra até á vila que se situava a uns quinze quilómetros de distancia da aldeia, ali iam vender alguns dos legumes por eles plantados e por vezes, animais, cabras, galinhas e borregos. Terminada a venda, quase sempre se dirigiam a uma tasca, e por ali ficavam bebendo, rindo, cantando até o dia escurecer. Os serranos não eram muito populares entre os residentes da vila, pois estes achavam-nos rudes, sujos, e incivilizados e sempre prontos para desacates e conflitos. O serrano era um homem forte e alto, de feicões rudes e traços rasgados, nariz grande, cabelo cor de avelã, olhos azuis celestes e faces rosadas pelo álcool e pelo frio. Homem de poucas palavras, usando sempre frases curtas geralmente em tons imperativos, tendo assim todos ou quase todos receio dele. O serrano era um pequeno rei no seu pequeno condado, o seu condado era a aldeia que o tinha visto nascer e crescer. Os súbitos, os familiares tais como: os seus irmãos e primos que também lá viviam. Por ser grande  forte e dono de quase todas as casas e terrenos na serra, o serrano era também casado com a mulher mais bonita da aldeia, a Celeste. Celeste era uma mulher no principio dos trinta, apesar de ser mãe de sete filhos, continuava esguia e bela, possuidora de uma tez clara, cabelo negro e olhos cinzentos. Celeste era assim desta forma cobiçada por todos os homens da aldeia, pois era considerada por todos, para alem de sua  beleza (que todos cobiçavam incluindo também as mulheres) mulher de grande coração e bondade. Celeste era então, bela, calma, e generosa. Com todos estes atributos e num meio de uma hierarquia provincial fechada, era normal que o serrano cuidasse de sua mulher melhor que cuidava de si próprio, preocupava-se com que nada lhe faltasse, estando sempre atencioso ás suas necessidades e comunicando sempre com esta em linguagem de quem ama, achando que este ser amado lhe era precioso e impriscindivel á sua existência. O amor do serrano por Celeste era tão grande que por vezes este sentia-se pequeno, rude e incivilizado em relação a esta.
O serrano a mulher e os filhos viviam na casa maior da aldeia, que ficava logo á entrada da aldeia no alto dum cume. Era uma casa grande e espaçosa, também esta feita de xisto mas caiada, com vista para todas as outras  serras e para a aldeia. A casa era constituída por cinco quartos e uma sala com forno, por baixo ficavam as lojas, onde os animais viviam. Durante o dia, a mulher do serrano passeava as cabras, as vezes sozinha, outras vezes com alguns dos filhos mais pequenos, pois as tarefas mais dificies como: cortar lenha e lavrar o campo eram destinadas sempre aos filhos mais velhos. O serrano lavrava as terras, cuidava dos terrenos e assim como era  generoso com a sua esposa também era generoso com os seus filhos. Nunca lhes gritava, sempre sendo atencioso que nada lhes faltasse. Isto não era visto como coisa muito "normal" aos olhos dos outros, tendo em conta que o serrano, era conhecido por ser homem de personalidade rude, dominante e imperativa.
Ora num dia de verão do ano de mil novecentos e trinta e seis, chegou á aldeia um homem de aspecto invulgar. Este homem trajava um  fato casaco de cor castanha, usava óculos redondos e tinha cabelo negro semi comprido cortado até debaixo das orelhas. Todos na aldeia ficaram intrigados com esta presença e quiseram desta forma  todos logo saber quem seria aquele individuo e o que faria ali na aldeia,. Veio-se a saber que aquele individuo era o filho de um individuo que tinha sido professor há muito tempo atrás, na aldeia onde as crianças iam á escola, e que se encontrava ali porque queria escrever um livro, pensava. Segundo as suas palavras. Que a serra o poderia inspirar e lhe abrir horizontes para o livro que estava a escrever.O serrano orgulhoso por ser ele o mais rico da aldeia e possuidor  também da casa maior, logo convidou o escritor a permanecer em sua casa, oferecendo-lhe todos os serviços gratuitos como: casa, comida e roupa lavada, (pois não é todos os dias que um homem tem um escritor como hospede em sua casa, pensava). Assim aconteceu o filho do professor aceitou a oferta e um dos filhos do serrano, mostrou-lhe o quarto onde poderia ficar.
O escritor já estava a viver na casa do serrano há mais de um mês, gostava de ali estar, gostava do quarto onde ficava, que tinha vista para a serra, gostava da família do serrano e gostava das gentes da serra. Sendo uma pessoa que nunca ou quase nunca tinha tido contacto com a província(sempre tinha vivido em Coimbra), o escritor achava que aquela experiência que ele estava a viver, era única!, e também poderia vir a ser muito enriquecedora. Os dias passava-os assim: ora estava no quarto a escrever, ora dava passeios pela serra contemplando a natureza selvagem e agreste que o rodeava, suspirando mares de felicidade.O escritor achava a mulher do serrano, bela, inteligente e doce, sentia-se fascinada por esta mulher, e não compreendia que uma mulher como esta pudesse ali viver sendo submetida aquela situação de mãe de tantos filhos, por isso evitava quase sempre assim de lhe dirigir a palavra, e o mesmo sucedia com a mulher do serrano, esta sentia a mesma atracão pelo escritor, admirava-lhe a sabedoria das suas palavras, a engenharia das suas escritas, pois não sabia ler nem escrever, a delicadeza dos seus gestos, a sua sensatez e as suas mãos delicadas de homem que não lida com o campo. Celeste pensava que a vida a tinha enganado, que um homem como o escritor, é que ela devia ter casado. Assim, seria agora ela também uma senhora, talvez vivesse em Coimbra, e talvez fosse dona de alguma retrosaria. Os sentimentos dos dois eram assim desta forma reciprocos. Mas nem nunca o escritor tinha ousado abordar a mulher do serrano sobre a atracão que estava lhe causava, nem a mulher do serrano o tinha abordado sobre o assunto. Então no dia a dia vivam a mentira difícil de nada sentirem um pelo outro porque ambos temiam essa paixão que os sufocava e lhes mutilava as palavras aquando a sós. O serrano, esse, nada desconfiava. Sabia que a sua mulher era bela e cobiçada por muitos, mas não poderia desconfiar que um ilustre escritor e senhor da cidade pudesse ele também cobiçar Celeste que não passava de uma simples serrana lavradora e mãe de sete filhos. Ora num sábado de manha, nessas manhas em que o serrano num grupo de dez homens descia a serra até á vila para vender algumas cabras que a ele lhe tinham sido encomendadas.  Celeste e o escritor ficaram pela primeira vez a sós na casa. Os filhos do serrano encontravam-se na aldeia dispersos por sítios diferentes, alguns em casa de vizinhos brincando com outras crianças, outros a pastar cabras, outros a lavrar a horta, e outros a apanhar e a juntar lenha.
Já havia quase dois meses que o escritor vivia na casa do serrano e já havia quase dois meses que o escritor vivia aquela paixão cega de quem se sente atraído mas que está proibido de amar. Sendo os olhos o espelho da alma , não foram então necessárias palavras, para que o escritor e a mulher do serrano dissessem, naquela manha de sábado. O escritor tomou coragem e nervosamente aproximou-se de Celeste e gentilmente acariciou-lhe a face, olharam-se os dois olhos nos olhos durante muito tempo, e pela primeira vez sem emitirem palavras a mulher do serrano acariciou a mão do escritor que lhe acariciava a fase, revelando assim que também ela era reciproca nesse amor, beijaram-se num beijo longo e ardente, beijaram-se como se fosse a primeira e ultima vez, não temendo nada nem ninguém,  abstraindo-se simplesmente de tudo e todos e não ligando ao suposto facto de talvez um dos filhos do serrano e de Celeste, inesperadamente pudesse entrar em casa, ou de serem constatados por um ou outro vizinho curioso que por ali passasse.
As vezes em certos momentos na vida das pessoas a intuição pode falar muito alto, e nesse dia de sábado de manhã do ano de mil novecentos e trinta e seis a intuição do serrano falou alto demais. Enquanto este ia descendo a serra em grupo de dez homens e estando a uns dois quilómetros distante de sua casa. Dominado pela intuição que algo de errado se passava, o serrano voltou-se para trás e comentou com os outros homens que o acompanhavam que não estava a se sentir muito bem, que iria voltar para casa e se estes não se importavam de lhes vender as cabras. Assim feito e dito o serrano deu meia volta e decidiu voltar para trás em direcção á sua casa. O medo dominava-lhe os passos e a adrenalina secava-lhe a garganta. Enquanto caminhava em passos lentos mas decididos. Como quem teme o pior, como quem teme a verdade. O serrano falava consigo próprio "Coisas da tua cabeça" Pensava. "Tá parvo homem",  continuava a pensar. Como a modos de se tranquilizar a ele próprio.
E assim foi o serrano entrou em casa com o coração a bater  forte e com a boca seca de medo e de ansiedade. Deparou com Celeste que estava deitada na mesa castanha rústica e longa da cozinha. Viu o corpo semi nu e magro do escritor entrelaçado no corpo da sua mulher. Ambos estavam  seminus e beijavam-se, emitindo gemidos de amor e de prazer.
E foi num ápice que naquele ano de mil novecentos e trinta e seis numa aldeia da serra da Lousã que o serrano pegou na catana que tinha escondida entre telhas e barrotes debaixo do telhado da cozinha. Aquando louco e cego de ciumes, esquartejou até á morte, ambos o escritor e a mulher, vindo ele próprio a morrer assassinado, alguns anos mais tarde numa prisão!

domingo, 22 de janeiro de 2012

Mãe, tu bateste á porta!

Mãe, tu bateste á porta mas eu não abri...desculpa, mas é assim!....todos os segredos que guardo comigo, nunca os quiseste escutar, tens medo de ser confrontada com a verdade, sim... eu sei que ás vezes  a verdade pode doer!
Quero que neve... quero sempre que neve, sinto-me assim segura e sossegada na imensidão branca do silencio da neve!....mãe, já te disse que não te posso abrir a porta, porque insistes em  interromper o meu silencio?....não sou poeta, nem filha de ninguém, e por isso não quero abrir a porta! quero simplesmente, permanecer assim....sozinha, sossegada a respirar pensamentos, encostada na almofada do silencio...obrigado inverno, porque me ajudas a entrar nessa tua imensa tristeza, que me tranquilizas no teu frio, e me empurras na  tua solidão, fazendo-me avivar o sétimo sentido,  pode-se ser feliz, sozinho...dizes-me ao ouvindo, lançando frases fortes! desafiando a minha existência! atirando-me contra a parede! anulando a minha pessoa.... assim ...sozinha!....dizes, enquanto me embalas, e... eu adormeço... hibernando palavras,  acreditando nas tuas palavras, nos teus pensamentos e desejos.....
Mãe, não por favor não batas mais á porta!...não vês que me perturbas e me fazes acordar neste sono de inverno do qual não quero acordar...deixa-me descansar...não quero sequer pensar que tenho que me levantar e abrir a porta....sabes? a neve já cai, e continua a cair, tudo fica branco e gelado, e eu... e eu sozinha, sem a tua companhia...só eu e o inverno, e a minha mãe a bater á porta...e o silencio, silencio que é meu, que dorme todos os dias comigo na cama...não, não tenho amantes!.....sou-te fiel.. mas, não revelo a ninguém esta nossa relação...somos assim, amantes... amantes independentes...eu e o silencio...somos próximos, mas distantes!...próximos, porque nos amamos, distantes, porque somos feitos de distintas matérias.
 Tenho medo, tenho medo de me tirarem o involcro que me cobre.., desvendando, assim silêncios!, desvendado segredos!....mãe, não por favor não batas mais á porta...não vês que  estou no prazo final...não vês que  o silencio esta a acabar, e o que farei quando o inverno findar?... quem me vai embalar na noite?...quem me vai contar aos ouvidos, segredos por revelar? quem me vai embalar no silencio?
 Hiberna para sempre..diz-me suavemente, o silencio do inverno ao meu ouvido... é mais fácil...continua dizendo...e eu..anulo-me de tudo e todos, quero estar só...quero estar só, mas tenho medo que ele se vá, e que o sonho termine... no inverno tudo é mais fácil, porque tudo é mais verdadeiro...e a neve continua a cair...e a minha mãe mais uma vez bate á porta...vai te embora! digo-lhe por entre a ranhura da porta...vai te embora!...continuo-lhe a pedir docemente....mas, ela bate á porta e continua a bater....quer me levantar do silencio! quer me arrancar palavras! destapar-me do meu sono!...e eu continuo lhe a dizer...mãe, não vês que não tenho mais forca! não vês que seria  mais fácil se pudesse hibernar... se pudesse hibernar...para sempre neste silencio branco de inverno gelado!
A minha mãe bate mais uma vez á porta...e continua batendo,  mas eu não abro!.....espreito pela ranhura e vejo-a a ir-se, vejo-a a ir-se embora...vejo-a a deslizar vagarosamente, triste, cabixada.... descendo passo a  passo o degrau da escada....
Volto para dentro, deito-me ao lado do silencio, e ficamos assim, os dois juntos lado a lado de mão dada, ouvindo a respiração suave, um do outro...eu e o silencio...lá fora a neve continua a cair... a minha mãe não bate mais á porta...deixou de bater, e eu adormeço para sempre no silencio branco e gélido do inverno...escondendo segredos, hibernando histórias...hibernando histórias,  por revelar!

sábado, 21 de janeiro de 2012

Viviamos assim...

Éramos ao todo, quatro cães acorrentados. Tínhamos como dever olhar pela casa dos nossos donos. Vivíamos assim...todo o dia acorrentados. Ao sol e à chuva. A nossa casota era constituída, nem mais nem menos, simplesmente por canas, (tijolo vermelho sem ser pintado ou caiado e cimento), às vezes com sorte um plástico a cobrir a casota, (não vá a chuva cair mais forte nesse dia) e gotejar lá dentro. O chão da casota  era feito de terra solta, e em tempos de inverno gelado, em dias de sorte, palha, palha essa, que não era mudada nem todos os dias, nem todas as semanas, enfim, eu detestava aquela minha vida. 

No verão as moscas picavam-me as orelhas, até fazer feridas! mas como não me podia mexer, mais que um metro de distancia, nada ou quase nada podia evitar, que isso acontecesse. Mas o que mais me dava pena, nesta desgraça completa de ignorância e miséria humana a qual fui submetido, desde que me trouxeram para cá, aos oito meses de idade, era a minha mãe que se encontrava, ela também acorrentada e não muito longe de mim.

A minha mãe era uma cadela bonita com pedigree, a qual tinham dado o nome de Bela, porque era Bela. 
O meu pai nunca soube ao certo quem foi, mas segundo o meu aspecto físico, ou seja o meu focinho de labrador, deve ter sido ele também, cão de raça. Pois na realidade pareço uma mistura de labrador com Dálmata, mas como eu ia contando, ao principio da minha história, cada qual de nós tinha a sua casota e estávamos distribuídos por sítios diferentes no quintal, assim podíamos vigiar a casa (não vá o diabo tece-las) de diferentes ângulos, atrás, à frente e dos lados.

A minha casota, tal como a casota dos meus outros companheiros da desgraça. Tinha sido feita pelo filho mais velho dos meus donos. Eu era o Grande, a minha mãe a Bela, e os outros dois cães rafeiros, o César e o Trovão, que eu não sei bem ao certo, como ali foram parar.
Os meus donos, pessoas do campo já idosas, talvez na casa dos sessenta, com medo de assaltos, e com medo que fugíssemos para a estrada e fossemos atropelados (antes isso que viver assim), usavam-nos como vigilantes e acorrentavam-nos, dia e noite, noite e dia, verão, primavera, outono, inverno, penso, que em quatro anos que ali permaneci fui solto, (podendo andar á roda do quintal) talvez, umas cinquenta vezes.

A tigela onde comíamos, era constituída por um tijolo que tinha uma cavidade profunda no meio, era ai que a minha dona, depositava os restos do almoço ou os restos do jantar todos os dias.  As moscas sobrevoavam o prato, às vezes no verão a comida borbulhava tendo tendência para azedar, sendo o calor muito e as horas de exposição ao sol também,  faziam-na desta forma azedar. No inverno, a chuva essa, caia torrencialmente dentro do tijolo da comida,  ainda me lembro das migas com o grão à superfície a boiar na água. Confesso que detestava aquilo tudo,  tudo aquilo me metia muito nojo e ódio, e a vontade de morder uma perna ou um braço aquele que se aproximasse, crescia de dia para dia. 

Sei que me temiam por ser grande e por rosnar muito. Mas não sou violento, só me atrevi em morder a perna da minha dona uma vez na vida, (e levei logo como antídoto ao crime cometido),  uma varejada na cabeça, e a ameaça de: -hoje não há comida, por seres mau... como se a mim me importasse, ficar um dia sem comer,. Aquela comida a ferver em dias de verão no tijolo azedo. 
-deves ser muito fino,  dizia a velha às vezes, queixando-se dos dias em que me faltava o apetite, e em que eu rosnava um bocadinho, como sinal de aprovação ao comentário. Sim era fino, mas infelizmente tinha que viver ali....

Como os anos iam passando e nada acontecia, eu sentia-me como prisioneiro do meu próprio filme, a apodrecer em vida naquela prisão exterior, preso à minha condição canina de não poder  nada fazer sobre o assunto. então decidi  por mãos ao assunto, tomar medidas e actuar. As hipóteses que tinha de fuga eram escassas. A corrente era grossa e como raramente era solto, pensei que a única e ultima oportunidade seria esperar e tentar escapar na próxima oportunidade que me soltassem.
Ora num dia de Abril desses dias de Abril verdes já com cheiro a fresco e a primavera, onde o sol já espreita e o céu muito azul,  carrega algumas nuvens gordas e muito brancas, e em constante movimento, como num desenho infantil. Nesse dia, chegou numa camioneta a casa dos meus donos, o Senhor Aníbal, homem também já velho que ali ia ás vezes, vender mercearias, (coisa ainda muito típica na província), o senhor Aníbal gostava de mim e eu gostava do senhor Aníbal. Sempre que me via, vinha-me logo fazer festas na cabeça e chamava-me campeão. Sei que muitas vezes me pediu para sua companhia, mas os meus donos, para mal do meu pecados, recusaram o pedido, tendo em conta a necessidade da minha presença em "lhes guardar a casa". 

Assim que vi o senhor Aníbal  na sua camioneta cinzenta enferrujada, pensei para comigo, que se calhar desta vez, (como já tinha acontecido algumas vezes anteriores), ele me iria soltar, claro que isso só poderia acontecer com o acordo dos meus donos, então se isso acontecesse, seria talvez uma das minhas ultimas oportunidades de poder escapar, sei que iria ficar com pena de deixar a minha mãe, mas como nunca, eu e a minha mãe nada podíamos fazer juntos, apenas só nos contemplar um ao outro de longe, (visualizando assim desta forma a desgraça do destino marcado de cada um), o melhor mesmo, seria então a fuga!

O senhor Aníbal estacionou a camioneta. O trovão e o césar começaram logo a ladrar, querendo dar ares de cães muito bem mandados e fieis, que ao mínimo sinal alertam os seus donos da aproximação de alguém ou algo. Os meus donos apareceram logo vindos de dentro da casa,  a minha dona vindo mais à frente trajando  uma bata  de cor castanha floreada, limpando as mãos ao avental, o meu dono logo mais atrás, cajado na mão e boina na cabeça. Aproximaram- se ambos à camioneta do senhor Antunes, compraram o que tinha a comprar, discutindo, entretanto preços e trocando frases feitas tais como:"-a vida tá cara". "não se pode". 

Eu muito perto, ladrando um bocadinho para avivar a alma do senhor Antunes da minha pobre existência, o senhor Antunes  a responder aos meus donos, às perguntas sobre o preço dos alimentos, feitas por estes, e de vez em quando uma frase pequena dirigida a mim: - Ó campeão" dizia  -hoje tás chateado rapaz?" perguntava e acrescentava: " tás a ladrar muito, queres conversa". E eu respondia, ladrando, soltando latidos pequenos e batendo com o rabo em movimentos curtos e rapidos, pois não iria o senhor Antunes mesmo pensar, que eu estava zangado ou furioso, e ter receio de se aproximar mais de mim e ai talvez perder a escassa oportunidade do senhor Antunes pedir para me soltar: "queres conversa?", perguntava, acrescentando, enquanto recebia o dinheiro da venda das mercearias, e eu abanava a cabeça, dando pulos baixos na boa esperança de ele me ir soltar. E assim aconteceu, a pedido do senhor Antunes e com o consentimento dos meus donos fui solto nessa tarde. A minha dona ainda disse: -cuidado, senhor Antunes não vá ele fugir para a estrada! , mas ainda ela não tinha terminado a frase, já eu ia galopando como um cavalo pelo quintal a fora, deixando atrás de mim rabanadas de areia soltas no ar e pegadas fortes, de quem muito rápido corre em caminho da liberdade, correndo, correndo, sempre sem parar até ao outro lado da  maldita estrada, (causadora dos meus muitos anos de cativeiro) correndo até ao outro lado sem parar estrada a fora, pelo lado da berma, sem tempo nem coragem de olhar pra trás, ignorando as buzinelas dos carros, que achavam estranho um cão de raça, com ar abandonado, andar por ali. A ultima imagem que tenho desse dia, foi o o olhar estupefacto dos meus donos e do senhor Antunes, parados e imobilizados pelo choque brutal da minha fuga rápida e veloz!

Nunca mais soube nada da minha mãe, penso que deve ter morrido de velha, acorrentada ao destino que a perseguiu o resto da vida. Hoje já meio velhote, recordo aqui deitado aos pés do meu dono, no tapete verde da sala, ao lado da lareira, ouvindo o barulho da lenha a queimar. Recordo esse dia. Recordo...o carro amarelo limão, que parou a meu lado, para me salvar, que aquando e por falta de forcas , o corpo já não reagia e as patas deixaram de se mover. A língua de fora, expelindo baba.  E como já não podendo correr mais, parei. As crianças lá de dentro do carro, no banco de trás, curiosas a espreitar, desesperadamente, ansiosamente. Pedindo ao pai, pedindo á mãe. -mãe, -pai,  por favor! - é tão lindo! deixem-nos ficar com ele...e foi assim que entrei no carro....

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

dezassete anos

 Eu quando tinha dezassete anos, namorava  com um rapaz a quem eu e os meus amigos, chamávamos de galinha. O galinha era um rapaz de porte alto, ombros largos, com algumas pequenas sardas na face, olhos castanhos e cabelo castanho, cujo os seus pais eram oriundos de uma pequena aldeia perto de Castelo branco enquanto os meus pais do Alentejo. Aquela zona da margem sul do Tejo era assim, quase todos éramos filhos de pais que vinham de qualquer outro lugar do pais, mas quase nunca de Lisboa ou de Almada, ou mesmo da zona onde morávamos, não sei ao certo como eu e o galinha começamos a namorar mas sei que foi na altura que eu frequentava o décimo ano da escola secundária da Amora que se situava na Cruz de pau, terra que não ficava muito longe do sitio onde morava,
a minha relação com o galinha teve um prazo de relativamente dois anos, todos os dias nos víamos e todos os dias o galinha me ia visitar á escola, que ficava a poucas quadras de sua casa onde habitava sozinho com os pais, sendo pois filho único.
O galinha frequentava  o nono ano do ensino nocturno da mesma escola que eu , e como de dia, nada ou pouco tinha que fazer, ia me visitar á escola e levar, o que se chama no bom, português, antigo a "merenda", e lá vinha ele, de porte alto, cabelo muito liso, cortado  pelos ombros, mostrando os dentes alvos e brancos, traços quadrados, expelindo felicidade nos seus dezoito anos, já passaram vinte cinco anos e ainda o consigo recordar assim, alto, feliz, vestido de azul surfista, sempre de ténis, e com ar de fiel namorado, dentro de um saco de plástico, o papo seco recheado, por vezes  de paio, outras vezes de queijo, não que os meus pais não me dessem dinheiro  para almoçar, mas sim porque eu gastava muitas vezes o dinheiro do almoço em cigarros, café, bolos ou chocolates. nessa altura passávamos também, muitas vezes as tardes inteiras no café, por vezes faltando ás aulas, resumindo numa mesa de seis pessoas, permaneciam a tarde inteira, por cima da mesa, duas bicas e uma água,  as duas  bicas e a água, davam desta forma, a hipótese de nós podermos ficar (ignorando, a raiva do dono do café) longas horas á conversa no café,
O galinha fazia parte de um grupo de jovens com idades compreendidas entre os dezasseis e os dezoito anos, confesso que nunca me senti muito segura nesse grupo a qual eu parecia ter que fazer parte por ser sua namorada, nem nunca achei que tinha muito em comum, pois na realidade, eles eram os amigos do galinha,e não meus,  mas eu como gostava dele, porque ele me compreendia, mimava, e apoiava em quase tudo que eu fazia. ou que queria fazer, então mais por dever que por outra coisa qualquer, eu dedicava algum por cento da minha pessoa a esse grupo..
Num dia quente de verão, mas mesmo muito quente do dia, vinte cinco de Agosto do ano de mil novecentos  e oitenta e seis, eu tinha andado nessa semana ás voltas com a minha prima que era mais ou menos da minha idade, e que estava de ferias a passar uns dias na minha casa, e tal como eu, gostava de aventura,  ambas decidi mos fazer um trajecto á boleia com partida por Almada e destino ao Alentejo, nos anos oitenta não era muito normal a raparigas andarem á boleia em Portugal, mas não dando importância a esse pequeno detalhe, pusemos mãos ao assunto e passado duas horas (com dois minutos de espera por um condutor generoso que quis parar), chegamos ao destino combinado. Chegamos a esse destino, perante o olhar estupefacto e acusador dos nossos parentes da província, que nos olharam de alto a baixo, pensando, segundo se veio a constar mais tarde, que  "se não estaríamos drogadas" Enfim sem comentários e... terminada a viagem com regresso a Almada e paragem prévia na casa de uma amiga da minha mãe, á qual eu tinha ido vender a minha bicicleta ao neto, regressei de novo com a minha prima á Cruz de Pau a casa dos pais do galinha que no momento se encontravam de ferias em Castelo Branco, e tal como tinha combinado com ele,  nesse dia iríamos nos encontrar pelas cinco horas da tarde, á porta de sua casa. Alegrava-me o facto de nós pela primeira vez, em dois anos de sermos namorados  termos a casa disponível só para nós, e a minha prima estar comigo e alguns amigos do galinha também poder vir a estar.
Quando toquei á campainha achei estranho ele não responder, pois o galinha não era do tipo de chegar atrasado ou de não aparecer se houvesse algo marcado, e como naquela altura, nos anos oitenta, ainda não existiam os telemóveis, era difícil saber, então do seu paradeiro, passaram algumas horas talvez duas ou três e eu e a minha prima, decidimos tentar novamente, mas como ninguém respondia ao toque da  campainha, uma das vizinhas que morava no rez do chão, e que me conhecia, convidou-nos a entrar dizendo que podíamos esperar ali em sua casa em vez de estarmos á espera na rua, lembro-me que a esta altura do dia comecei-me a sentir preocupada, e a sensação de ansiedade começou-me a invadir, quando temos medo que algo de negativo tenha acontecido ou  possa vir a acontecer, sentimos quase sempre, como que uma corrente de ar gelado, mas ao mesmo tempo eletrica e quente, que começa na garganta descendo lentamente até ao estômago e ai se instalava até á exaustão do "querer saber"!
Entretanto tocaram á campainha, e dois indivíduos, um homem e uma mulher de meia idade, talvez rondando a casa dos quarenta, perguntaram pelos pais do galinha, eu expliquei-lhes que eles estavam de ferias e achando tudo muito estranho, perguntei, quem eram eles e se sabiam alguma coisa do paradeiro do galinha, tentaram me acalmar dissendo que vinham do hospital e que tudo estava bem, que o galinha e outros dois amigos tinham tido um acidente de jipe, mas que felizmente não tinha sido grave, os dois amigos no momento encontravam-se na esquadra a depor sobre o acidente, e que o galinha ainda se encontrava hospitalizado, sei que nesse momento as lágrimas começaram-me a cair involuntariamente pela cara abaixo,  e que o medo se instalou em mim, mas logo fui confortada por estes indivíduos, que acharam que o melhor seria, era eu e a minha prima irmos para casa, e telefonar-mos no dia seguinte. Já na manhã seguinte e tendo passado uma noite daquelas onde se acorda a desejar que tudo não tivesse passado de um pesadelo, contei o sucedido á minha irmã e pedi-lhe se não se importava de ser ela a telefonar, pois sentia-me exausta e peterficada de medo, embora não fossemos umas irmãs adolescentes lá muito chegadas, nem muito amigas, a minha irmã tendo em conta a minha cara de panico, aceitou a batata a ferver que eu lhe tinha imposto na mão, e terminando o telefonema que eu não quis escutar, com os olhos rasos de água e numa voz fraca e tremula de quem tem medo de falar por temer a reacao do próximo, dirigiu-se a mim , e disse " o galinha morreu". Este grande e pequeno, feliz e infeliz, capitulo da minha vida tinha terminado aqui, e como a vida das pessoas ás vezes é como um navio rubro ao mar sem saber ás vezes para onde e como navegar, por vezes entre vagões outras vezes por mares sossegados, sei que a partir desse dia o meu navio levou um outro rubro e navegou por muitos outros mares.
Passando alguns dias, ainda cochilando como se vivesse em estado de hipnose, ou então em estado vegetal, de quem mais vegeta que propriamente vive, vim a saber que afinal, que esses tais indivíduos que rondavam a casa dos quarenta e que me tinham dito, nesse fim de tarde quente do dia vinte cinco de Agosto, nos meus dezassete anos, para não me preocupar, eram  donos afinal, de uma agência funerária!

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O Inverno do meu descontentamento

Nos dias curtos e cinzentos de inverno da escandinava, onde o sol raramente brilha e os dias terminam cedo, por volta das quatro da tarde, ás dezanove e dois minutos exactamente da tarde de dezasseis de Janeiro do ano de 2012, lembrei-me de Maia, já fazia algum tempo que a tinha conhecido e como já não a via há imenso tempo desde a ultima vez em que trabalhei como consultora de dependências numa instituição para toxicodependentes. Lembro-me que no meu primeiro dia de trabalho em que cheguei pelas nove da manhã a esse ambulatório aonde teria que trabalhar alguns meses, pensei se na verdade  "aquilo" seria alguma coisa para mim, sempre na minha vida tive dificuldade em descobrir o que realmente gostava de fazer, talvez por gostar de fazer muitas coisas diferentes, e por achar que tinha jeito para muitas coisas mas também por achar que na realidade não tinha muito jeito para coisa alguma!
A chefe da instituição, mais ou menos da minha idade, talvez uns poucos anos mais nova que eu, informou-me logo aquando da minha chegada que a reacção das mulheres em relação a minha pessoa, não iria ser positiva, mas eu como profissional e conhecedora do assunto, teria que levar em conta a vida conflituosa que essas pessoas levavam como tal a falta de auto-confiança que lhes era atribuída no perfil de toxicodependentes, não percebi muito bem o que ela queria dizer com a conversa, e então com os olhos insinuei-lhe que gostava que fosse mais directa, que fosse direita ao assunto, e então a chefe da instituição acrescentou á nossa conversa, que achava que eu tinha bom aspecto físico e que isso provavelmente iria irritar as mulheres, não levei o comentário da chefe como um elogio ao meu aspecto físico, tendo em conta que maioria das pacientes que ali se encontravam, sofriam de todo tipo de problemas físicos e psíquicos, tais como: falta de membros superiores e inferiores, falta de dentes, Anorexia, bulemia, equizemas de pele, obesidade, enfim um leque infinito de todas as doenças existentes no nosso planeta e muito patentes na "tribo dos toxicodependente", ainda á conversa com a minha chefe, respondi-lhe para não se preocupar que se calhar agora ao principio talvez não simpatizassem comigo, mas que depois no decorrer do meu percurso a coisa se iria recompor e que eu iria fazer todo o possível e imaginário para que isso acontecesse, que as coisas terminassem bem e de uma forma positiva.
O meu trabalho no ambulatório consistia em mais coisas práticas do que propriamente em terapias cognitivas ou terapias de grupo, que eu tinha aprendido em todo o percurso do curso, pois ali não havia qualquer tipo tratamento, não havia ninguém para tratar, nem para salvar, e tal como os outros funcionários que ali trabalhavam  diziam: "...daqui só para o cemitério..." sei que isto é humor negro (não sei se escandinavo se não), mas infelizmente a realidade era essa mesma, então tomei como precaução, não me envolver sentimentalmente com ninguém, nem com homens nem com mulheres.(coisa que tinha aprendido no curso como chave de ouro para um bom sucesso profissional).
Tinha que chegar ao trabalho pelas oito da manhã, e já por esta altura se encontrava nas escadas da instituição, que se situava num primeiro andar, alguns pacientes em estado quase mórbido de abstinência, quase vomitando sentavam -se no chão das escadas á espera desesperadamente que abríssemos, alguns acompanhados com cães outros sozinhos e outros em pares de namorados. Antes que abríssemos pelas oito horas e trinta minutos da manhã, nós os funcionários, reuniamo-nos e comentávamos o estado psíquico de cada paciente, inerente ao dia anterior,  o que faríamos nesse dia e as tarefas destinadas a quem e a cada qual, terminada a reunião, eu por vezes acompanhada de algum pedagogo ou enfermeiro, dirigiamo-nos até á cozinha e preparava-mos o pequeno almoço, entretanto se não estava na cozinha a ajudar a preparar o pequeno almoço, estava na sala de enfermagem ao lado a distribuir: medicamentos, seringas, compressas, ou então a segurar na roupa destes pacientes enquanto estes se injectavam, nesta situação eu sempre com os olhos desviados para o outro lado. Terminada a sessão de filme de terror de longa metragem e com a abstinência tirada, dirigiam se á cozinha para tomarem o pequeno almoço.
Maia era uma rapariga alta, podemos mesmo dizer bastante alta, portadora de uns olhos imensamente azuis e com um peso de não mais de quarenta quilos distribuídos numa altura de um metro e oitenta, tal como o seu pai  Maia também era toxicodependente, o que se chama em linguagem técnica herança social. O seu pai encontravas se no momento hospitalizado, o que a preocupava bastante, e ao que parece e por aquilo que dela conheci, Maia tinha uma relação (dentro das circunstancias) muito perto e muito positiva com o seu pai.
 Não sei bem porquê, mas simpatizei logo com ela, não por ter pena de ser toxicodependente e ser anoretica, ou seja em termos técnicos o que se chama (diagnose dupla) mas porque ás vezes entre as pessoas existe uma certa química que nós não podemos explicar e acabamos por gostar mais de uns do que outros.  Para alem de todo o tipo de assuntos práticos na instituição também me foi distribuído a tarefa positiva e agradável de trabalhar num atelier de costura que fazia parte do projecto da instituição, como tinha estudado designe de roupa e sabia costurar, desenhar e fazer moldes, acharam que a tarefa e a responsabilidade do atelier de costura seria minha, essa tarefa consistia em por os pacientes a costurar, ou a fazer qualquer coisa com as mãos, desde arranjos, a cintos, carteiras e bolsas... Maia era das pacientes a qual que mais frequentava o atelier e por isso que mais tempo passava comigo. As vezes tinha dificuldades em  perceber o que ela dizia, porque por ser tão magra, as cordas vocais, traqueia, todo o aparelho respira tório parecia ter sido afectado pela doença, tal como a  sua pele e as suas unhas que na realidade já não existiam,  a pele das suas mãos sofria de equizemas, que cocava constantemente, originando assim feridas, que tentava disfarçar usando luvas.
Tal como eu Maia adorava roupa, então trazia todos os dias algumas pecas de roupa de sua casa entre outras algumas roubadas em lojas, segundo ela, eu tinha que as avaliar ou tentar lhe dar uma ideia com que outra peca ela poderia conjugar essa mesma peca, mas como era excessivamente magra quase toda a sua roupa tinha que ser apertada , então era quase sempre isso que fazíamos as duas juntas no atelier, ora tira daqui ora tira dali e zás! pronto! o tamanho desejado. Sempre lhe dizia que achava que devia se alimentar melhor para ganhar peso, mas Maia tal como muitas outras pessoas que sofrem de distúrbios alimentares, achava que tinha o peso certo para a altura certa , e ganhar peso seria então uma coisa desnecessária quase fútil aos olhos de Maia.  Eu nunca insistia em nada com ela e achava do meu ponto de vista que o melhor era ser feliz, no pouco tempo de vida que eu achava que lhe restava.
Num desses dias de inverno de neve, onde demorei mais que uma hora para fazer um trajecto de seis quilómetros de bicicleta, cheguei á instituição mais morta que viva com a roupa toda molhada e o cabelo muito rígido e todo branco da neve, como tinha chegado atrasada a Maia já lá estava á minha espera no atelier, mal entrei começou logo por perguntar muito aflita aonde é que eu tinha estado e porque é que tinha chegado tão atrasada, depois do meu breve comentário sobre a neve e a dificuldade em andar de bicicleta, Maia entregou-me um embrulho floreado decorado com fitas dourada, é para ti, disse sorrindo  e acrescentou que eu tinha sido a pessoa que ela mais tinha gostado que ali tinha trabalhado, dei-lhe um abraço (coisa muito típica na escandinava) e disse-lhe obrigado, desembrulhei o embrulho que consistia num vestido de verão verde, que era da Maia mas que ela já não vestia por lhe ficar grande." muito grande mesmo". Acrescentou....
Passado uns meses de ter terminado esse trabalho e estar farta de não conseguir emprego em lado nenhum, lembrei-me de dirigi-me a esse ambulatório, quase convicta que se falasse com a chefe da instituição, ela me arranjaria talvez emprego outra vez ali, á conversa com a chefe sobre a dificuldade nos dias de hoje de conseguir emprego, fui também perguntando, já no fim da conversa, pelo paradeiro de alguns dos pacientes que conheci e que mais contacto mantive, quando lhe perguntei pela Maia, a minha ex chefe disse-me com um ar triste mas muito cool, (típico de pessoas que lidam com a morte no dia a dia) que a Maia tinha morrido, fiquei triste como é óbvio e de vez em quando penso nela. Hoje no dia dezasseis de Janeiro do ano 2012 fez precisamente um ano e meio que a Maia me ofereceu o vestido verde de verão (lembro-me da data, porque um amigo meu faz anos nesse dia) e ás vinte e duas horas da noite a porta do meu guarda fato abriu se lentamente (excesso de roupa, penso...),  o vestido verde de verão que a Maia me tinha oferecido há precisamente um ano e meio atrás, caiu do armário entre várias outras pecas de roupa. Não sou supersticiosa, podemos dizer que me autointitulo por céptica, mas levantei o vestido, coloquei-o encostado a mim e com a lágrima ao canto do olho, dobrei-o bem dobrado e guardei-o para todo o sempre numa gaveta mágica...

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O senhor Aleixo

O senhor Aleixo vivia na Piedade ( Margem sul do rio Tejo) e era dono de um quiosque, desses quiosques onde se vende todo o tipo de coisas, desde revistas a todo o tipo de livros possíveis e imaginários,  revistas de bricolage,  revistas cor de rosa, revistas aos quadradinhos  de moda com ofertas, dessas que trazem colado á capa, para chamar a atenção do consumidor:  um bâton, uma mala, um biqui ni para a praia, um chapéu para o sol,  uns óculos de plástico ou etc e tal... O senhor Aleixo vendia também o velho clássico Borda de Agua, a Nacional Geographi, jornais, e tabacos, livros clássicos, como os bichos de Miguel Torga e os Contos da montanha... e todos os "ensaios" possíveis e imaginários do Sr: José Saramago.
 Sendo vitima de uma grande falta de cabelo, falta essa que ficava situada no alto em cima da  nuca logo por cima da testa,  tentava ocultar esse problema capilar desesperadamente, penteando o cabelo todo junto só para um lado, achando assim  que desta forma, ser mais difícil lhe reconhecer a calvice. (coisa que não acontecia como é obvio). O Senhor Aleixo, tinha sempre o cabelo oleoso e sofria de caspa crónica, a caspa caia-lhe assim como em pequenos flocos de neve tendo como paragem final os ombros, e cada vez que gesticulava ou movia o seu corpo lento, grasso e rígido, a caspa lá caia, uma atrás da outra, até aos ombros, mas eu acho que o senhor Aleixo para alem da cálvice, não ligava muito ao problema da caspa ou a outros problemas mais relevantes, ou se ligava não dava lá muitos ares de grande preocupação. Andava quase sempre vestido de cores escuras, como: azul escuro, castanho, cinzento ou preto e em cima dos papos gordos, enormes e avermelhados situados abaixo dos olhos,(papos esses de quem muito lê ou então pouco dorme), ofuscava  uns óculos de massa preta e de graduação grossa e bacia que lhe faziam uns olhos muito pequenos, estilo fundo de garrafa, dando lhe desta forma um ar  intelectual de pessoa que  muito lê e como a sua tez era clara e a sua pele era húmida e propicia a equizemas, associava eu então, o Sr Aleixo a um intelectual estilo" toupeira" pois penso que cheirava a humidade e como que quase nunca de casa saia ou se saia, nunca querendo se expor  ás diferentes temperaturas climatéricas, eu achava que o Sr Aleixo e as toupeiras tinham muito em comum. Os dias esses  passava-os assim, enfiado no seu quiosque sentado e debruçado sobre os  livros lendo e relendo e quando vinha o fregues, desviava o olhar lentamente do que estava a ler e vagarosamente levantava a cabeca, olhando para o cliente como se este o tivesse a incomodar ou lhe tivesse ousado interromper a leitura, depois limitavas se a responder ás perguntas feitas pelo fregues com frases curtas, a modos de o despachar, (mas, nunca sendo mal educado) e não dando assim desta maneira e possibilidade ao outro de prolongar conversas ou fazer outro tipo de questões que o pudesse empatar..
Ás vezes imaginava o sr Aleixo nos seus tempos de juventude nos anos sessenta, setenta, e pensava que o Sr Aleixo devia ter  feito parte de algum movimento, talvez do movimento da paz ou pertencido a qualquer partido politico com ideologia esquerdista, imaginava-o assim numa dessas revistas a preto e branco dos anos sessenta, setenta, ao lado de uma jovem, como uma protagonista de um dos filmes do Woddy Allan dos anos sessenta, de cabelos compridos claros e muito lisos, o sr Aleixo,  também de cabelos longos e já nessa altura com óculos de  fundo de garrafa, mas jovem e menos sério, ao lado de muitos outros jovens vestidos com calcas á boca de sino e colarinhos compridos e quase quadrados. Imaginava o assim, na revista em frente a uma assembleia da republica  ou a uma ou outra fabrica,  protestando qualquer coisa politica do género como: o exílio politico, a falta de liberdade de expressão e a miséria, resumindo o fascismo, que se vivia nessa altura no pais, também o conseguia imaginar no seu apartamento do rez do chão do prédio da rua Margarida, sentado no seu sofá  de napa verde fria com rebordo fininho de cor branca a sublinhar á volta, fumando cigarros de enrolar,  uns atrás dos outros, dando sempre bafadas curtas e lentas enquanto lendo,  livros esses, cujo e qual o escritor é desconhecido e anónimo por quase tudo e todos e que só pessoas como o senhor Aleixo sabem de sua existência.
Embora nunca  tivesse ido visitar o Senhor Aleixo no seu rez do chão da rua Margarida, tenho quase a certeza que a sua casa devia ter o mesmo cheiro caracteristico do quiosque como também era o seu próprio cheiro, cheiro dominante, a bafo e humidade e a papel húmido com relevo de parede, onde o sol está sempre ou quase sempre proibido de entrar.
O Senhor Aleixo vivia assim, os seus dias,  pelas nove da manha saia de casa, e passava pelo café da estrada Nacional para beber a bica, depois abria o quiosque e em movimentos lentos pendurava as revistas, entrava no quiosque, enrolava um cigarro com os seus dedos curtos, gordos e amarelos de quem fuma muito tabaco de enrolar, ponha o rádio a tocar, fechava depois á uma hora da tarde para o almoço, e depois ás três  voltava de novo, e por ali ficava até o dia se fazer noite.., e como a sua expressão era uma expressão indiferente e apática, a tudo ou a quase tudo e todos, nunca percebi bem o senhor Aleixo, como nunca consegui perceber bem se estava bem ou mal ou como estaria o seu estado de alma nesse dia.
No outro dia quando passei pela Cova da Piedade, lembrei-me do quiosque do senhor Aleixo e quis por lá passar, o quiosque encontravas se fechado, numa placa estava escrito a vermelho "trespassasse".  Como sou curiosa e gosto de saber de onde as pessoas vêm o que fazem e para onde vão, não resisti em entrar e perguntar no café onde o senhor Aleixo costumava ser cliente fixo e onde todos os dias costumava ir tomar a bica pelas oito horas da manhã, então, não hesitando entrei e perguntei se sabiam do seu paradeiro, veio-se a constatar, segundo o jovem empregado do café, que o sr Aleixo tinha sofrido de um acidente cardo vascular e que se encontrava imobilizado numa cadeira de rodas a viver num lar de terceira idade, lá prós lados do Seixal.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

A aldeia


No meio dos montes alentejanos, onde o ar cheira a azeitonas, e as pastoras cuidam dos seus rebanhos, existia a aldeia de Santa Luzia. Uma aldeia pequena e branca com poços, moinhos, pastores e  homens e mulheres do campo que vinham ali á taberna e á mercearia da minha tia e da minha avó e ali ficavam durante muitas horas até o céu  se fazer azul escuro e estrelado (como só é o céu do Alentejo), havia o cantar nocturno das cigarras e os cantares alentejanos de quem trabalhou de sol a sol e que ao entardecer do dia afoga a alma e a voz cantando nostalgicamente  amores desencontrados e partidas de quem ama mas que tem que partir, deixando para trás  mulheres e filhos. Os beijos salivantes quase pegajantes das mulheres velhas de luto e dos homens de tez moura e rude curtida pelo sol, contra a minha cara .... todos meus primos ou com qualquer grau de afinidade comigo ou se não o fossem, logo o tentariam encontrar  desesperadamente até ao retorno exaustivo á quinta geração, eu e o meu primo no soalho que ficava por cima da taberna a espreitar, a rir, a cuspir para baixo, por uma fenda que existia no chão, e a fazer concurso de escarretas, a ida aos pisco, a imagem dos pássaros de bico aberto a morrer presos na armadilha, expirando e inspirando o ultimo sôfrego, até ao momento final como numa tentativa frustrada de desviar o destino da morte, imposta pelo meu primo no isco da armadilha, a ida ao poço Concelho com a minha avó para ir buscar a água, a minha avó pequena e frágil, cabelo longo muito grisalho quase branco e preso num carapito, a casa das carnes, os chouriços a corar durante vários dias pendurados sobre o fumo da lareira, o ruído bucólico e silencioso da lenha a arder em noites frias de inverno, onde a minha tia abria um livro e contava histórias, a minha avó quase sempre zangada, quase sempre muito zangada,  vestida de luto, o xaile a cobrir-lhe a silhueta pequena e frágil,,  a morte deitada na cama, o cheiro doce e açucarado da morte, a lembrança desse cheiro na casa do meu avô, o meu avô ali deitado, cabeça coberta com ligadura, corpo estendido, caiu do macho...dizia a minha tia, já não tinha idade pra essas coisas...dizia o meu tio, o meu pai a empurrar a lágrima para dentro....porque um homem não chora!, a primeira vez que vi o meu pai  chorar.... o quarto do meu avô, quarto de parede branca caiado situado ao fundo da cozinha, lá fora  o quintal ...os figos da índia a amodelecerem papada mente e a caírem da árvore... sob o sol abrasador do Alentejo, o forno branco e grande de cozer o pão no quintal do meu avô, a casa do meu avô com vista pra aldeia situada do lado direito ao cimo da travessa, o meu avô ali deitado sem alma de corpo vazio,  a romã, as bolachas Maria  a nota de vinte escudos, que o meu avô me dava a mim e á minha irmã que era uns anos mais velha que eu..tudo muito bem posto a primor num saquinho de plástico transparente.....ali estava, a romã , o pacote de bolachas´Maria, e os vinte escudos, e  nós contentes eu e a minha irmã...ali, vestidas quase de igual, vestidas quase de igual, mas sempre muito diferentes...a aldeia que existia e que eu queria habitar, mas que não podia, o meu avô a partir....o funeral, o caminho até ao cemitério, os choros, os lamentos...por vezes alguns gritos...finos, discretos de quem  mais como dever do que outra coisa qualquer, ensaiou  muitas vezes o grito do som da dor da morte....  todos caminhando lentamente em fila indiana, muito certinha, todos vestidos de negro, vestidos de luto, os que cá ficam a lamentarem o destino dos que se vão, a sussurra,  as crianças atrás, os homens esses...os mais chegados  a carregar o caixão do defunto, entre eles o meu pai....o meu pai alto e forte ....os irmãos altos e fortes....as mulheres mais atrás ao lado das crianças...eu lá atrás ao lado das mulheres..., eu... nove anos...a despedir-me do meu avô ....e o meu avô a partir....  

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Chamo-me Suzete

Chamo-me Suzete , tenho 58 anos e moro aqui, neste prédio que foi construído em 1945 prós lados da Graça. Moro sozinha com a minha mãe e nunca tive um namorado nem nunca fui casada, resumindo tudo numa só palavra "nunca conheci um homem".
A minha roupa cheira a naftalina  tal como a minha alma e a minha vida, tudo está impregnado na mesma substancia. Enquanto escrevo estas palavras olho e analiso lentamente o baú de pau preto que o meu tio um dia trouxe de África de uma vez que lá viveu. A analise feita por mim ao baú é profunda e minuciosa,  encontro pequenas figuras de mulheres africanas em tronco nu levando os filhos ás costas, mulheres grandes, pequenas, magras e gordas, observo as pequenas fendas na madeira que já precisava de ter sido tratada há tantos anos, a esta observação juntasse o som do tic tac do gigantesco relógio de pé branco da sala, uma vez comprado por o meu pai numa dessas idas de manhã de sábado de sol á feira do relógio e penso, penso que o meu lugar devia ser ali dentro do baú velho de pau preto ao lado dos álbuns de fotografias e dos pequenos souveniers que eu e o meu querido e falecido pai e a minha mãe compramos em algumas viagens que fizemos pela Europa. Enquanto analiso o báu, imagino a minha silhueta vestida de luto pelo meu pai falecido á oito anos, imagino a minha silhueta ali sentada e agachada timidamente ao lado dos souveniers e dos álbuns de fotografias...as lágrimas caem-me uma a seguir a outra...sou infeliz, muito infeliz mesmo, mas tenho vergonha de ser infeliz por isso nunca o disse a ninguém....é um segredo que guardo comigo.
È um prazer poder pensar, como se lançasse uma bóia ao mar e eu no meio da tempestade eu me pudesse agarrar a ela.....e salvar-me.
"Então como vai D.Suzete, está boazinha?", as perguntas parvas e vazias do costume, como se eu não  soubesse que tampouco te importas com o meu estado, comigo e com a minha mãe que ali está morrendo lentamente esticada ao longo na cama, pele dura e rija, "é só ossos...coitadinha", dizem as vizinhas. A próxima vez não lhes abro a porta. Sei que é tudo mentira, vêm aqui porque gostam de ver a morte que espreita sobre a minha mãe, esta morte lenta, fria e dolorosa que aqui entrou sem pedir licença... e ficam assim, deliciadas vendo a morte a apoderasse lentamente da minha mãe e... adoram o meu vazio, cobiçam o meu silencio, porque a elas nada lhe dou, nem lhes conto ...um sim, um não ou um talvez, obrigado e boa tarde... e saem porta fora devagarinho sem olhar para trás.. temem o meu olhar, porque sabem que nos meus olhos conseguem  ler a minha alma e sabem que eu sei que mentem.
À noite sussurro por baixo dos lencois e na penumbra da luz olho o meu corpo velho e rugoso e penso que os anos passaram. Suzete ficaste velha, feia, rugosa e magra, tão magra que posso ver as veias do meu corpo e contar as costelas do meu peito. Mas penso nele e nos beijos que trocamos, penso nas suas mãos grandes, masculinas e dominantes que me acariciavam o cabelo como se ele fosse tão leve como o vento, penso no seu sexo forte, quente e erecto que me penetrou tantas vezes e que me deu tantos momentos de prazer...."amo-te", diz-me ao ouvido, enquanto fazemos amor. Um sorriso fugaz invade-me a alma e sou feliz por uns instantes. Penso nas nossas crianças, temos três: um rapaz e duas meninas, o João, a Clarissa, e a Clara, penso no meu emprego, secretária nas finanças, o emprego dele, empregado no banco, penso na nossa casa. Adoro a nossa casa porque é grande, adoro a nossa casa porque é grande e branca e limpa e porque  tem vista pro Tejo...e eu adoro o mar...suspiro, que mais posso querer?....A voz da minha mãe soa, chama por mim....Suzeeteeee!, levanto-me da cama vou ao encontro dela, entro no quatro seguro-lhe na mão, na sua mão pequena, na sua mão magra seca e fria...e fico ali sentada a seu lado no silencio da noite, eu, a minha mãe, o silencio da noite, a morte, e o baú de pau preto que uma vez o meu tio trouxe de África!!!!