quinta-feira, 24 de maio de 2012

O ourives



Um dia um amigo meu, que tal como eu também gosta de escrever, escreveu uma frase que gostei muito, e que ficou aqui guardada para quase todo o sempre na minha memória, a frase dizia o seguinte:  "sou um ourives de palavras". Gostei da frase do meu amigo, que me fez  logo saltar à imaginação, num cenário pequeno e difuso, um homem de meia idade, pequeno, magro, calvo e quase careca, trajando um colete sem mangas de cetim negro e trabalhando arduamente em frente a um fogão de uma oficina de ourives, mexendo, polindo e lustrando...palavras!

Gotas de suor, caem-lhe pela testa abaixo, está calor, na oficina do ourives, o fogão está ligado, a água ferve...as palavras são lançadas uma a uma, dentro da frigideira coberta de água com sabão, e como o próprio ourives diz: - É para ficarem mais polidas, lustradas e brilhantes, assim não nos irá faltar a clientela...

Fico contente com a observação inteligente e perspicaz do ourives, mas apesar do ourives, ter experiência no assunto das palavras, e à medida que este as lança na frigideira, as apruma, lustra e pole, estas vão se derretendo e sumindo lentamente, uma a uma. - Pode ser do calor. diz o ourives assustado. - Há que ter cuidado...continua dizendo suspirando....

Por uma questão de precaução, baixou-se o fogo, agora mais baixo e lento, o ourives, continua o seu árduo trabalho, de lançar palavras na água com sabão a borbulhar na frigideira. O ourives num monólogo vai- se precavendo a si próprio, dizendo: - Há que ter cuidado com as palavras que lançamos e com as frases que construimos, e acrescenta ao monólogo: - não vá lá o diabo tece-las! 

O ourives, desconhece a minha presença mas eu continuo a observar-lo. Estou sentada a um canto da sua oficina escura, mórbida e fumacenta e enquanto o observo sinto-me  intrigada com  a agilidade dos seus gestos rápidos de mão,  e na sua  arte de mexer com palavras, mas continuo sem entender o objectivo do seu árduo trabalho. A tal, conhecida difícil arte de juntar palavras.

O ourives, lê-me o pensamento, não me vê, mas sabe que existo e sabe que estou ali, sentada  a um cantinho da sua oficina, escura e fumarenta., a observa-lo.

Vejo-o agora, mais tristonho, mais pálido e de aspecto mais cansado, parece-me que desistiu, parece-me que desistiu de ser ourives, parece-me que desistiu de ser "ourives de palavras", e que nada mais tem a fazer ali, naquela oficina, pequena e bafienta, onde trabalhou toda a sua vida. A frigideira de água com sabão a borbulhar de quente, foi retirada do fogo, despiu o colete negro e sem mangas de ourives, retirou a viseira  negra colocada à roda do braço a simbolizar viuvez. Neste cenário que observo, pergunto a mim própria, porque é que quase todos os ourives, são magros e viúvos?

O ourives das palavras, cabixado e de gestos lentos, dirigi-se  á porta de entrada, e sobre a porta, coloca uma tabuleta onde escreve em letras brancas maiúsculas e feitas a giz. "Trespassasse".

Antes de sair e num movimento rápido, o ourives vira-se para trás, olha para mim sem me ver, percebe que eu não percebo a atitude dos seus gestos e diz, lançando palavras no ar para me tranquilizar: - as letras, são para ser postas, assim uma ao lado das outras, p r o m e n o r i z a d a m e n t e, diz soletrando lentamente consuantes e vogais. - e com cautela, até fazer frases, frases bonitas, frases engenheiradamente bem construídas!

O ourives, tristemente,  continua  a falar para si próprio e murmura... _ penso que perdi o jeito na arte de juntar palavras,  e acrescenta à frase. com olhos tristes e difusos: -acho que já estou  velho....
Terminando a frase, roda devagarinho a maçaneta da porta antiga da oficina, sai e bate a porta sem olhar para trás! .   

quarta-feira, 16 de maio de 2012

A professora Vera

A Professora Vera.

quando era miúda, e andava na escola primária, tinha medo, mas mesmo muito medo da minha professora Vera.
Agora que tenho quarenta e três anos, e penso na Vera, recordo-a agora mais nova que eu, mas nessa altura quando eu era miúda, a professora Vera era aos meus olhos de gaiata, uma mulher de aspecto sério, sisudo, e de quase meia idade.
A professora Vera, usava tal como todos nós na escola, uma bata branca, e como penteado, uma Misse, muito bem armada e muito bem fixada, ajudando ao penteado, muitos litros de laca.  Lembro-me que era quase loira, que tinha um nariz Aquilino, e que os olhos eram quase verdes. Eu tinha medo da professora Vera, e tal como eu muitos outros miúdos da minha sala de aula, tinham  medo da professora Vera, mas não me consigo lembrar de momento nenhum que nós crianças falássemos sobre esse assunto, talvez tenhamos nos acostumado a ter medo da professora Vera, ou talvez pensássemos que seria normal naquela altura do ano de 1975, as crianças terem medo dos professores, pois naquela altura ter medo era sinal de respeito. Só sei que levei muitas reguadas e que numa sexta feira, (dia em que o padre sempre nos visitava para  pregar, o amor e a paz, entre nós os mortais pecados os), eu levei três reguadas de seguida, por ter que repetir a frase que o padre tinha acabado de recitar, e  por me ter esquecido de algumas dessas palavras. Ao escrever estas palavras, vem-me subitamente á memória, uma cena extraída de um filme de Pedro Almodôvar "má criação", mas nesse tempo, era assim! 
Por ter medo da professora Vera, tinha medo de ir á escola e odiava também a bata que a minha mãe me obrigava a usar. A minha tia, tal como a minha mãe, tinha duas filhas que eram quase da mesma idade da minha irmã e de mim ( minhas primas), então por vezes as roupas de umas ou de outras eram trocadas entre as famílias, a mim muito infortunadamente, tinha-me calhado na rifa aquela horrorosa bata branca, abetuada de lado em vez de ser abetuada atrás num laço, (como todas as batas normais das outras miúdas), então lá ia eu, sete anos, cabelo liso comprido de franja,de bata abetuada de lado, a subir a ladeira final e íngreme que levava  á pequena escola primária, a minha mãe quase sempre me acompanhava no caminho matinal de casa  para a escola,  ás vezes parávamos numa pequena padaria, que se localizava, não muito longe da escola, numa rua abaixo da ladeira (onde a escola se situava)  e comprava-me um bolo, penso que naquela altura um bolo custava cinco escudos, comprava-me quase sempre um queque ou um bolo de arroz, segundo a minha mãe, os queques e os bolos de arroz, eram os mais saudáveis, e os únicos que as crianças deviam comer, porque não tinham cremes. 
A minha mãe, não sabia que eu tinha medo da professora Vera, tal como não sabia que eu tinha medo de ir á escola, e que odiava a minha bata branca. Penso que a minha mãe simpatizava com a professora Vera, e que estava contente, por eu (tal como a minha irmã) ter passado da primeira classe para a terceira, e por ser muito inteligente, ( segundo as palavras da professora Vera) e isso claro, bastava lhe! 
No ultimo dia do ano lectivo, dava-se a avaliação e a professora Vera, decidia quem passaria de ano lectivo e quem   reprovaria. Nesse dia do "juízo final",  havia sempre um grande silencio na sala de aulas, a avaliação era dada pela professora Vera, que já se encontrava sentada numa cadeira que se situava atrás da sua secretária. Óculos postos, penteado bem ao alto, expressão séria, querendo dar ares de pessoa muito importante e culta, os miúdos chegavam um a um, muito nervosos e tímidos, acompanhados dos pais, os pais calados e sorridentes traziam nesse dia do "juízo final" muitas coisas para prendar a generosa professora Vera, como: fruta, chocolates, bolos caseiros, azeite, flores e outras iguarias, pensavam  que a professora Vera, poderia assim, (tendo em conta a grande oferta que traziam de casa), passar o filho ou a filha. Afinal de contas, (e segundo o meu pai), não é com vinagre que se apanham as moscas. 
A professora Vera aceitava as ofertas esboçando um enorme sorriso hipócrita, e umas frases curtas, pequenas e feitas á pressa,  tais como: "obrigado", "sim, claro", "eles dão muito trabalho, mas deixe lá eu faço-lhe o favor de os educar, e veja lá nem sou das piores, ás vezes dou-lhes umas valentes réguadas , mas tem que ser, só lhes faz é bem".e lá nos ia passando.
Nesse dia final de ano lectivo, quase todos passamos, eu da primeira para a terceira, (perante o imenso orgulho da minha mãe) e continuei naquela escola a apanhar réguadas até á quarta classe. Apanhei réguadas por fazer buracos no caderno, (quando apagava qualquer coisa que tinha escrito errado fazia tanta forca com a borracha, e molhava sempre a borracha de saliva , para apagar mais facilmente), que sem querer, acabava por originar buracos nas folhas dos cadernos. Também apanhava réguadas por não me lembrar de frases que teria que repetir (infelizmente sempre tive problemas de memória). 
Lembro-me que a Alice, que era uma miúda  filha de uma outra professora, uma miúda de cabelo liso e loiro  e que cheirava mal dos pés, chegou á nossa escola e entrou na nossa classe, a meio do ano lectivo,  nunca me lembro de ela ter apanhado reguada nenhuma, por mais coisas que fizesse, lembro-me também que a ela era atribuído outro tipo de tratamento por ser filha de uma professora. 
A professora Vera, essa, nunca mais a vi, ou se a vi não a reconheci. Tenho ainda guardada  numa caixa branca no meu quarto ao lado da cama, uma fotografia a preto e branco, com a minha antiga  terceira classe, estamos todos juntos, destribuidos em dois grupos de baixo para cima, (como em todas as fotografias  tiradas a classes de escola), quando olho para a foto vejo o quanto  éramos  pequenos, ao nosso lado, acima da fotografia do lado esquerdo, a  professora Vera, revelando um pequeno e sério sorriso por baixo do seu grande penteado voluptuoso.
 Nunca mais vi a professora Vera, se calhar já morreu, não sei se a visse a reconheceria, mas penso que não hesitaria em me dirigir a ela e dizer-lhe: "obrigado, porque me passou da segunda  para a terceira, mas a dor, o medo e a humilhação que me fez sentir perante todos as outras crianças, foi tão grande que ainda hoje quando penso nisso, sinto o ardor nas mãos, e o medo que se instalava em mim cada vez que eu fazia a merda dos ditos buracos nas folhas do caderno, devia ter vergonha de ter batido assim nas crianças."
 A minha  mãe claro, se se encontrasse a meu lado, logo diria: ...não tens vergonha em falar assim com a SRa  professora Vera, era tão boa pessoa! 
     

quinta-feira, 3 de maio de 2012

A madame etiquetas



A Madame etiquetas, subiu a rua do Carmo, naquele fim de tarde quente de Agosto. Sabia que já era tarde,  e que já devia estar em casa, então muito apressadamente tentou se desligar do ruido do telemóvel que teimava em não parar de tocar, näo atendeu, dando em vez disso, atencão as montras das lojas, em busca de uns sapatos novos, e de uma outra coisa qualquer que a pudesse satisfazer nesse dia.
A madame etiquetas, Não precisava de sapatos novos  nem de nenhuma outra peca de roupa ou de algum outro acessório, mas o dia no escritório tinha lhe corrido mal, mesmo muito mal, entao como prova de amor a si própria, tentou se valorizar, aumentando desta forma a auto-estima, oferetando a si própria qualquer coisa, qualquer coisinha que lhe pudesse alegrar a alma nem que fosse só por alguma fraccão de segundos, pois como tantas outra coisas, compradas nesses dias complicados em que a auto estima teima em fraquejar, tinham como destino a gaveta das pecas nunca usadas, (sem sequer esta mesmo, se dar ao trabalho de lhes retirar a etiqueta).
A Madame etiquetas, era bonita, era bonita e sabia disso, sabia que quando passava pela rua, os homens a olhavam, olhavam para trás para avaliarem se a pontucão atribuida á parte da frente era mais ou  menos comparativa ao valor atribuido á parte de trás. Entäo quando pressentia estar a ser observada, erguia o troco altivamente, e orgulhosamente fingia olhar o horizonte, com um sorriso suave discreto de quem sabe que é bonito e que está a ser observado mas que não quer revelar, por não ser necessário.
O dia no trabalho, tinha corrido mal, apesar de trabalhar como secretária, há mais de seis anos numa empresa de construcão civil, e  se autotitular como uma optima funcionária, detestava o trabalho que tinha, assim como detestava os colegas de trabalho, achava que acabava por trabalhar arduamente muito mais que os restantes e ganhar nem sequer a terca parte do salário dos seus colegas, que exerciam funcões mais destacáveis  que a sua.
 Oriunda de uma familia pobre do Algarve, a Madame etiquetas era então uma rapariga ambiciosa, aos dezoito anos, mudou-se para Lisboa com o intuito de finalizar o curso de secretária e assim fugir ao trabalho arduo do campo. Foi numa dessas tardes de verão de sol muito quente, aquando passeando pela baixa, ( procurando também nesse dia de qualquer coisinha para lhe adocicar a alma) que a Madame etiquetas conheceu  Filipe. Filipe era vinte cinco anos mais velho que ela e dono de uma imobiliária. Nessa tarde quente de verão e passeando pela Rua Augusta a beleza da madame etiquetas despertou-lhe a atencão e näo foram necessários mais que dois meses que a Madame etiquetas e o Filipe casaram, grande casamento, grande boda, muitos convidados, choros da D.Celeste e do SR. Ambrósio, pais da Madame etiquetas, que vieram de um monte longinquo do algarve para ver casar a filha, e que bom casamento que fez, que alegria lhes tinha dado aquela filha unica, e prendada desde o dia que nasceu por uma beleza enigmática, digna de babar qualquer homem e  enraivecer qualquer mulher, e ainda por cima, inteligente." nunca chumbou nenhum ano", dizia a mãe da Madame etiquetas toda babada, "e ainda por cima conheceu um homem tão bom e que está muito bem na vida, e que a trata muito bem, é muito feliz", dizia.  Resumindo assim em poucas palavras, a vida feliz  e sem pontos de interrogacão, atribuida e imposta por ela própria á vida da filha.
A Madame etiquetas, continuava a caminhar pela baixa, já carregava consigo, um ou dois saquinhos recheados de pequenas coisas para a fazer feliz. A tarde já caia e a lua pequena e branca, já pairava algures discretamente no céu azul desenhado de nuvens. Já era tarde. Pensou. Devia ir para casa. Filipe tinha-lhe telefonado mais que duas vezes, mas ela tinha fingindo não escutar o telefone. Agora com trinta e tal anos, condenava-se a si própria ter casado com um homem vinte cinco anos mais velho que ela. Já näo o amava, aliás achava que nunca o tinha amado, mas a conta bancária e o charme de homem maduro e responsável, tinham falado mais alto. Amas-me?. Perguntava-lhe Filipe. "Tenho-te carinho", respondia-lhe, acariciando-lhe a nuca como se ele  fora  uma crianca que necessitasse de atencão. Sei que precisas de mimos. Acrescentava. Filipe sorria, um sorriso vago lento e estático. Sabia que ela näo o amava , mas inventava histórias na sua cabeca para poder ser feliz, para poder sobreviver, para poder acreditar que era feliz.
Em frente á porta de casa de um quinto andar num bairro novo de Lisboa, a Madame etiquetas deu duas voltas na fechadura, a porta abriu-se, apartamento grande, janelas grandes, quase imensas, quase um sonho....chamou pelo homem, chamou pelo Filipe, ninguem contestou, Filipe não respondeu, entrou na sala, os saquinhos que ainda trazia pendurados na mão, cairam, um a um, lentamente pelo chão, as pecas espalharam-se, olhou para cima, para o tecto da sala de pé alto, quase demasiadamente alto, Filipe olhava para ela, sem a ver,  olhar sem alma, vazio, pendurado na corda, corpo esticado, duro quase rigido, fato casaco azul escuro, camisa riscada ainda muito bem passada a ferro, sapato de verniz acabado de engraxar um outro caido no chão algures por outro  sitio, corpo ao alto pendurado na corda, corda grossa de prender barcos....algures ao longe no monte algarvio, soava a voz da mãe da Madame etiquetas. "A minha filha é muito feliz, tem uma boa vida, casou-se muito bem.....tem muita sorte...."
A madame etiquetas!