terça-feira, 6 de novembro de 2012

O novelo

Chamou a miúda que se encontrava do outro lado da sala para a ajudar a desfazer a meada de lã num novelo.
 A criança, magricela e de tez morena, correu apressadamente desde o outro canto da sala, ao encontro da mulher, e como que num ápice aprontou-se a esticar os braços, pronta e de braços bem esticados, mãos erectas, dedos esticados, e de língua de fora. A miúda tinha desta forma o corpo quase colado contra o corpo da mulher, o queixo pontiagudo da mulher tocava-lhe (sem esta querer e notar) a testa, e enquanto a mulher desfazia a meada, a miúda ia desviando lentamente o olhar sob o novelo que esta ia enrolando, levantando-o de vez em quando de encontro contra a face da mulher, e assim a miúda observava-lhe perplexa com os seus olhos de criança, as rugas profundas, quase como grandes cavidades situadas ao lado dos cantos da boca da mulher.
- Celeste!.Chamou a mulher outra vez. pressentindo que a miúda já devia estar distraída outra vez, a miúda baixou rapidamente o olhar, respondendo num tímido - sim, minha senhora! e a mulher acrescentou á conversa - Mexe mais os braços, senão hoje não me despacho, a pedido da mulher a miúda obediente e servil, mexeu um pouco mais depressa os braços em grandes movimentos largos e circulares, tentando acompanhar desajeitadamente o seu corpo de criança ao ritmo apressado com que a mulher engenheiradamente desfazia a meada de lã e a ia transformando num novelo.
 Como estavam perto uma da outra, quase corpo colado contra corpo, cada vez que a mulher baixava a cabeça para poder enrolar mais depressa o novelo, a nuca da mulher, tocava o queixo da miúda, e a miúda por ser curiosa e por querer, cheirava lhe discretamente o odor, fumarento e quase seboso do cabelo grisalho que esta usava num carrapicho preso em baixo da cabeça, agarrando-o com travessas de cor castanho escuro.
Cada vez que a mulher se baixava, para conseguir enrolar melhor o novelo, ora para o lado esquerdo ora para o lado direito, o cheiro familiar do cabelo da mulher, invadia as narinas da miúda e neste momento a miúda pensava que não devia ter medo a mulher, pois o cabelo da mulher tinha quase o mesmo cheiro de todas as outras pessoas que ela conhecia.
 - Celeste! A mulher chamou a atenção da miúda outra vez, adivinhando que a miúda já devia estar outra vez distraída, e continuou a conversa, murmurando entre os dentes. Quando murmurava, a mulher falava sem se dirigir especialmente a ninguém, falava sempre como se a miúda ali não estivera, coisa muito típica entre as pessoas do campo e daquela época, e acrescentava ao monólogo - Hoje, não sei que fazer para a ceia, é que o Sr.doutor, não gosta de comidas pesadas, parece que lhe provoca a azia. A miúda, não respondia, sabia que não eram perguntas, as quais ela podia responder ou opinar e sujeitava-se assim então á sua condição  de ser pequeno, trabalhador, mudo e obediente.
 A panela de pressão, apitou, ao mesmo tempo que se tinha terminado de desfazer a ultima meada, o novelo terminádo grande e de cor azul escuro, foi colocado ao lado de outros vários novelos da mesma cor e de mesmo volume, dentro de uma cesta de verga perto do fogão da sala de jantar. A mulher bateu as palmas das suas mãos secas e magras, quase transparentes, as veias grossas e azuladas das mãos pareciam-lhe querer explodir por baixo da pele fina e velha como vulcões em errupcão.
O bater das mãos significava que a mulher estava alegre por se ter desfeito a ultima meada, e servia como aviso á miúda, que a próxima tarefa do dia se seguia. A ceia. A mulher continuava falando como se a miúda ali, não estivesse, sempre dando ordens e instruindo-a nas tarefas da casa e continuava o monólogo limpando as mãos ao avental e dirigindo-se em passos pequenos e suaves da sala de jantar para a cozinha. A miúda pequena, magra e tímida seguia-a cautelosamente sempre uns passos atrás. Tentava acompanhar nervosamente e em vão os passos da mulher com as suas pernas curtas e magras.
A mulher continuava a conversa. Falava baixo, quase sempre em murmúrios, falava da importância da lida da casa, das dificuldades na preparação da ceia do Sr Doutor que sofria de azia, da escassez dos alimentos na mercearia da Teresa Rita. Falava, gesticulava, mas sempre com movimentos lentos, quase como demasiado dóceis ou finos para a época que se vivia e para a pessoa que se tratava. Ás vezes a mulher olhava para a miúda, e a miúda olhava para a mulher, quando ambos os olhares se cruzavam, liam o pensamento uma da outra e sem palavras só com o olhar, diziam uma a outra que não podiam ser amigas. As vezes havia no olhar da mulher um certo carinho e ternura pela miúda, mas a ternura e a docilidade, não era coisa própria daquela época. Abriu-se a panela de pressão, a mulher desviou a tampa com cuidado, como que se tivera medo que o vapor quente que saia da panela lhe pudesse queimar a cara.
A miúda pequena e ao lado da mulher seguia-a atentamente na preparação da ceia. A mulher questionava-se enquanto pegava na carne e nos enchidos e os despejava com cuidado para a panela regando-os de azeite, sal e agua e questionava-se. - Não sei se será suficiente? o Sr Doutor não come muito por causa da azia, mas a menina Margarida e os meninos, são de muito apetite e enquanto falava deitava grandes punha dos de feijão, depois fechou a panela com força, mordendo o lábio inferior, como a modos de ajudar o difícil acto de fechar a panela, enquanto mordia o lábio inferior o queixo da mulher parecia aos olhos da miúda, ainda mais pontiagudo, e a miúda assim de esguelha olhava para ela e observava-lhe o queixo muito aguçado dando-lhe vontade de rir.
A mulher lembrou-se de repente da presença da miúda e deu-lhe ordens outra vez, desta vez para por a mesa, pois os meninos, a menina e o Sr Doutor, já deviam estar a chegar.
Alguns minutos mais tarde, a porta grossa e pesada da entrada da casa soou, a mulher pediu á miúda para ir ver quem era, a miúda em passos curtos e rápidos foi abrir a porta, momentos depois voltou para dentro até á cozinha junto do fogão, onde a mulher ainda andava ás voltas com os preparativos da ceia, a mulher voltou-se e olhou para trás para a miúda que se encontrava com os seus braços delgados, caídos e com as palmas da mão juntas (como que a medos da reacção da mulher) a miúda permanecia atrás da mulher que preparava a ceia, esta voltou-se para trás e perguntou á miúda. - Então quem era, Celeste? a miúda respondeu:
- era só o vento, minha senhora.
 A mulher voltou-se de novo para a frente e continuou  a preparacão da ceia...

o novelo