sexta-feira, 19 de abril de 2019


A mulher

Era, um daqueles dias de inverno, onde as nuvens rasgam o céu, e muito de vez em quando deixam espreitar um sol triste e discreto, àquela hora de fim de tarde, havia muita gente reunida na rua, todos estavam juntos, parados olhando a estrada, que apresentava um rasto de sangue, um rasto de sangue que manchava  o cimento....eu era pequena em relação as pessoas que ali se encontravam, tinha ido ali ter com a minha mãe, a minha mãe segurava-me a mão, acho que aquele gesto a fazia tranquila, sentia assim que a filha estava protegida e perto dela, perante aquele cenário deprimente....algumas pessoas choravam, principalmente as mulheres. As crianças como eu olhávamos umas para as outras...presenciando ainda ingenuamente, aquela realidade triste que as vezes a vida dá, e que nós crianças até aquele momento, ainda não tínhamos entendido o quanto de rude a vida pode ser...

Na estrada havia sangue, mas também havia uma moto,  lembro-me da mota, era  pequena e  cinzenta, estava espalhada na estrada ao lado de uma grande poça de sangue.....eu e a minha mãe , estávamos um pouco afastadas da multidão e também da estrada. Ao longe vi a figura de uma mulher, uma mulher que se destacava entre a multidão, destacava-se da multidão por ser mais alta, por ser mais bonita, e por estar mais triste que as outras mulheres. Não chorava ou se chorava, chorava baixo, o silencio dela era de dor....e olhava a estrada e olhava a moto espalhada na estrada ao lado da poça de sangue, lembro-me que essa mulher tinha um marido, tinha um marido e quatro filhos, estávamos nos anos sessenta, e ela chorava silenciosamente, chorava olhando a estrada, olhando o marido morto caído na estrada...

Passados muitos anos tive oportunidade de me encontrar com um dos filhos desta mulher, ele era um pouco mais novo que eu, e eu tive curiosidade em perguntar o que tinha acontecido à sua mãe aos seus irmãos, depois daquele dia do acidente. Os gémeos tinham quatro anos quando o pai faleceu no acidente, outra miúda seis, e outro rapaz sete, imaginava o quanto de difícil para aquela mulher deveria ter sido, viver, viver só para os filhos, viver só com os filhos. Nunca se voltou a casar, nem nunca mais viveu com ninguém, era  jovem e  muito bonita,  a imagem dela, ficou-me sempre na cabeça, e  lembro-me que das muitas outra vezes que a vi, sempre caminhava sozinha, sem parceiro, sem os filhos, sem uma amiga, ou sem uma vizinha, mas sempre bonita de alta postura, de olhar sério,  felino,  olhos grandes amendoados, quase esverdeados da cor das azeitonas, pele queimada, lábios cheios, uma verdadeira musa dos cinquenta, como num filme de Fellini...
Eu imaginava a quantidade de homens que a deviam ter desejado...não compreendia porque quisera viver sozinha...dois dos seus filhos, tinham sido almas confusas, almas anestesiadas...mortas na adolescência....

Quando fiz cinquenta anos, e estava de férias em Portugal, decidi ir visitar esta mulher. Ela não me conhecia, nem muito menos sabia quem eu era, mas eu conhecia-a e sabia quem ela era, queria saber o que tinha passado com esta pessoa, como tinha vivido, todos aqueles anos, o que faria agora? Ainda estaria viva, talvez não…eu sabia o prédio onde ela vivia, e calculava que se fora viva, muito provavelmente ainda lá morava, mas como não sabia o andar, toquei para uma vizinha, que muito alegremente me disse, que sim, que a senhora ainda vivia ali, e que ainda era viva, 
- É no 4 esquerdo....
 Informou-me a vizinha baixinha do rês do chão.

Quando toquei á campainha, a mulher do acidente na estrada abriu-me a porta...eu apresentei-me, pois tinha a certeza que a mulher iria pensar que eu era uma louca, e não iria perceber o porque da minha visita....

Na sua velhice de pessoa de quase oitenta anos, ainda se notava que  beleza e muita perfeição, por ali tinha passado, os olhos verdes, uma vez, grandes e amendoados (que eu nunca tinha visto de perto), olhavam para mim,  agora velhos e tristes, quase baços, mas ainda belos....a pele morena tinha desbotado, dando lugar a uma tez pálida acinzentada, como se a morte lentamente  se aproximasse, os lábios cheios na boca bem desenhada, ainda existiam-... agora mais finos e escondidos entre rugas e tracinhos....

Quando, me abriu a porta, e eu lhe contei a razão da minha presença, convidou-me a entrar, como se tivesse estado todo o tempo à minha espera, e em passos lentos conduziu-me a uma sala grande, escura e silenciosa, depois pediu-me para sentar. Ao redor na sala, as fotografias dos quatro filhos decoravam estantes e móveis…havia uma moldura mais pequena em tons de castanho escuro, num canto de uma estante do móvel da sala…na foto via-se uma noiva e um noivo, sorridentes, no dia do casamento….

A mulher, deve ter pensado que eu era uma pessoa estranha, o que estava a fazer ali, aquela mulher de cinquenta anos que em miúda a tinha visto chorar, um acidente de um homem jovem que morreu, uma mulher sozinha que chora, quatro filhos que ficam sem pai, uma mulher jovem, que ficou sem marido e quatro filhos sem pai, ...

Expliquei-lhe que eu era uma pessoa curiosa, que depois daquele dia do acidente na estrada, sempre pensei nela, e que nunca percebi, porque tinha decidido ficar sozinha...e eu estava ali para ela depois daqueles anos todo me explicar, o porquê da sua escolha...e como tinha sido viver aquela sua vida sozinha....

A sua voz era cheia e forte, a voz de uma pessoa que tinha vivido em silencio sozinha com a dor, e que agora falava, quando fala olhava-me intensamente nos olhos, e os olhos sorriam, sentia-se bem, estava contente por eu estar ali sentada ao seu lado, no sofá da sala ampla e silenciosa, sentada ao lado de uma mulher estranha, curiosa,  uma mulher de cinquenta anos que há muitos  anos a tinha visto ficar viúva e agora estava ali....preocupada, curiosa....querendo saber da sua vida, elogiando a sua beleza, afinal, ela não tinha passado despercebida, era mais importante do que ela própria pensava que seria ou que algum dia poderia ter sido...


Contou-me que a morte lhe levou o marido, e que com ele, foi se embora a felicidade, a dor permaneceu-lhe no coração muitos anos, e a saudade iria morrer com ela, os filhos foram folhas e flores que ela tentou cuidar…mas a tristeza da vida levou dois, os gémeos, almas fracas, perturbadas anestesiadas. 
Ela nunca casou, nem  nunca viveu com ninguém, prometeu nunca o fazer, fez promessas de ficar só…mas a quem o prometeu, nunca me o contou.






Sem comentários:

Enviar um comentário