sexta-feira, 5 de novembro de 2021

A tia e o poço.

A tia e o poço..

 Ouviu a lenha estalar mais uma vez, no fogo da lareira da cozinha, e saiu à pressa, como se o tempo continuasse parado na sua grande e imensa solidão. Ao longe, um horizonte grande, robusto decorado com oliveiras, sublinhado em cima por um céu  vasto azul, livre e anarquista.

 A calma da manhã comecava, e já se escutava a aldeia, passos de botas em pés de adultos, passos de crianças em botas pequeninas, chinelos manualmente mal retalhados, animais que falam, gatos molengões e infelizes, deslizando-se lentamente pela travessa da aldeia, procurando tocas em paredes para se esconderem... 

Ali o meu pai, a sua casa, e a casa da sua familia, tantos irmãos, todos sentados à mesa em horas de almoço, o almoço que se chama jantar, o pão caseiro da minha avó, a calma do dia, tudo junto no cenário campestre, uma aldeia remota do interior seco alentejano.

O moinho, o moinho sempre lá esteve, sempre contente e vaidoso, espreitando curiosamente do alto do monte os figos tímidos da India, o moinho, pequenino, branco e maravilhoso...

          A minha avó fazia o pão, o pão saia quente dentro do forno branco caiado do quintal.     

 O cantar dos grilos e das cigarras na noite quente alentejana... -gostas de nêsperas? tens que provar umas que tenho lá no quintal. A nespereira bonita, castanha e atrevida a querer espreitar o cume do poço, a minha tia contente e risonha, alta e esguia, os dedos compridos, fartos de fazer maravilhas, maravilhas em renda, bordados imaginários, onde a agulha desliza feliz e independente sobre o dedo que a dirige, a minha tia, a tia que nunca vi....

 À minha frente, uma figura de idade, com muitos anos, agora mais baixo, mais calmo, e mais lento, sobrevivente, o sobrevivente que conta memórias, a familia grande que acabou.

 Recorda as manas, recorda os manos: - éramos sete, o primeiro que acordava vestia as calças....e continua quase murmurando - uma sardinha era para dois, uma pausa, um pequeno, meio sorriso e a conversa continua pausadamente.... -naquele tempo, muitos morriam de tuberculose!

 Em pé na cozinha, de frente com o corpo encostado aos armarios castanhos, recordando passados, passados, cheios de presente, presente que dói, recordando, as coisinhas pequeninas do dia a dia, que o faziam feliz, tal como o dia, em que adormeceu sentado, debaixo de uma oliveira, e que uma bolota o acordou, caindo-lhe em cima da pálpebra fechada do olho...., com o corpo encostado aos armários da cozinha e as mãos atrás das costas, como se fosse pequeno e estivesse a fazer uma confissão à filha,  e continua o dialogo....... -todos os dias penso, coisas da minha vida que passou, uma aldeia que existiu, outrora cheia de gente...agora quase vazia.. 

 baixa a cabeça, continuando o dialogo que quase é monologo.

-Não sei bem o ano em que foi, pois já não me lembro bem, mas tinha ai uns dezassete anos e fazendo as contas ao ano que nasci, devia ter sido em 1949, sim, estávamos no ano 49..............

 A tia alta e feliz, de pernas compridas e esguias, dedos de princesa, mãos de fada engenheiradamente, inteligentes...um sorriso largo num rosto longo, o cabelo farto e castanho preso de lado numa travessa castanha de dentes finos....um colar de botões feito por si,  os irmãos quase todos mais pequenos ....a energia saudável de um corpo comprido vestido de branco e de rendas, a irmã mais nova e estudiosa, com os livros sempre a acompanhar,, companheiras as manas, diferentes mas amigas, a cozinha grande, com o lume ao canto escondido, o pai a mãe, os irmãos homens, mas tão pequenos ainda por cuidar....A roupa suja por lavar, tia de corpo longo e esguio, pergunto-lhe; -vais lavar a roupa?

 A tia foi lavar a roupa, foi lavar a roupa numa manhã de sol, descendo a travessa e a aldeia, de alguidar à cabeça, mão na cintura, sorriso no rosto.... ao sair de casa, ainda ouviu a voz da mãe dizendo, - traz umas nêsperas!

O poço, ao lado da nespereira, eu ainda lhe disse - tia não vás lavar a roupa, mas a tia não me ouviu, desceu a travessa e a aldeia de alguidar à cabeça e mãos à cintura; a mãe ainda a lembrou; -traz umas nêsperas! desceu a travessa, passos por caminhar, manhã quente de Maio, de cheiro a figos, e a roupa por lavar, a tia foi lavar roupa, saudou o noivo, apanhou as nêsperas, o galho da nespereira partiu, a tia caiu, a tia não voltou, tia, tia.....a tia sozinha de tez cinzenta lá em baixo, estática, no fundo do poço, os manos tristes a chorar... 

O corpo alto e esguio da tia, o braço partido, tez da cor da morte, corpo frio e esguio, atravessando a aldeia embrulhado, na manta castanha de lã de barras brancas, a dor de quem o vê passar. Gritos e choros, a minha avó, vestida de negro, o meu avô fragil e franzino, silenciados na dor, a lágrima a cair, primeiramente uma devagar depois muitas outras, deslizando em fila, uma atrás da outra, devagar sobre a tez seca e enrugada do vasto sol alentejano....

Os irmãos da tia, a mana da tia, a tia estendida na cama, a mana a chorar, a tia estendida, morta de braço partido sob a cama de ferro azul, as visitas ao quarto da tia morta, a tia vestida de branco, o cabelo castanho, preso ainda pela travessa castanha, ( que teimou em ficar) as pontas do cabelo ainda molhadas da água do poco, a tocar as rendas sob o peito do vestido branco largo e solto, terminando em gotas como lágrimas a rebentar sob o algodão do vestido...

O choro fininho e silencioso do meu pai no quarto ao lado da irmã....a vingança do meu pai...a ida à nespereira... a corrida desesperada de lagrima no olho e a dor quente na garganta, a dor da irmã que morreu, ainda a voz da minha avó  - não te esqueças das nêsperas! o poço a respirar ainda a morte......a nespereira escondida sob o poço, sentindo remorsos, do que fez! 

O galho ainda a bailoçar timidamente sobre o cume do poço....a fúria do meu pai ainda jovem e miúdo...a morte injusta e sorrateira que lhe levou a mana....

Continua a falar, ainda, encostado aos armarios da cozinha, as mãos atrás das costas, como se fosse pequeno e não tivesse ainda terminado a confissão daquele dia, e continua soletrando as palavras, num tom baixo e vagamente...:

-  Sai de casa a correr, fui  à nespereira, levei um machado e parti-a...

 ...nunca contei nada a ninguém...


 

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