quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

A aldeia


No meio dos montes alentejanos, onde o ar cheira a azeitonas, e as pastoras cuidam dos seus rebanhos, existia a aldeia de Santa Luzia. Uma aldeia pequena e branca com poços, moinhos, pastores e  homens e mulheres do campo que vinham ali á taberna e á mercearia da minha tia e da minha avó e ali ficavam durante muitas horas até o céu  se fazer azul escuro e estrelado (como só é o céu do Alentejo), havia o cantar nocturno das cigarras e os cantares alentejanos de quem trabalhou de sol a sol e que ao entardecer do dia afoga a alma e a voz cantando nostalgicamente  amores desencontrados e partidas de quem ama mas que tem que partir, deixando para trás  mulheres e filhos. Os beijos salivantes quase pegajantes das mulheres velhas de luto e dos homens de tez moura e rude curtida pelo sol, contra a minha cara .... todos meus primos ou com qualquer grau de afinidade comigo ou se não o fossem, logo o tentariam encontrar  desesperadamente até ao retorno exaustivo á quinta geração, eu e o meu primo no soalho que ficava por cima da taberna a espreitar, a rir, a cuspir para baixo, por uma fenda que existia no chão, e a fazer concurso de escarretas, a ida aos pisco, a imagem dos pássaros de bico aberto a morrer presos na armadilha, expirando e inspirando o ultimo sôfrego, até ao momento final como numa tentativa frustrada de desviar o destino da morte, imposta pelo meu primo no isco da armadilha, a ida ao poço Concelho com a minha avó para ir buscar a água, a minha avó pequena e frágil, cabelo longo muito grisalho quase branco e preso num carapito, a casa das carnes, os chouriços a corar durante vários dias pendurados sobre o fumo da lareira, o ruído bucólico e silencioso da lenha a arder em noites frias de inverno, onde a minha tia abria um livro e contava histórias, a minha avó quase sempre zangada, quase sempre muito zangada,  vestida de luto, o xaile a cobrir-lhe a silhueta pequena e frágil,,  a morte deitada na cama, o cheiro doce e açucarado da morte, a lembrança desse cheiro na casa do meu avô, o meu avô ali deitado, cabeça coberta com ligadura, corpo estendido, caiu do macho...dizia a minha tia, já não tinha idade pra essas coisas...dizia o meu tio, o meu pai a empurrar a lágrima para dentro....porque um homem não chora!, a primeira vez que vi o meu pai  chorar.... o quarto do meu avô, quarto de parede branca caiado situado ao fundo da cozinha, lá fora  o quintal ...os figos da índia a amodelecerem papada mente e a caírem da árvore... sob o sol abrasador do Alentejo, o forno branco e grande de cozer o pão no quintal do meu avô, a casa do meu avô com vista pra aldeia situada do lado direito ao cimo da travessa, o meu avô ali deitado sem alma de corpo vazio,  a romã, as bolachas Maria  a nota de vinte escudos, que o meu avô me dava a mim e á minha irmã que era uns anos mais velha que eu..tudo muito bem posto a primor num saquinho de plástico transparente.....ali estava, a romã , o pacote de bolachas´Maria, e os vinte escudos, e  nós contentes eu e a minha irmã...ali, vestidas quase de igual, vestidas quase de igual, mas sempre muito diferentes...a aldeia que existia e que eu queria habitar, mas que não podia, o meu avô a partir....o funeral, o caminho até ao cemitério, os choros, os lamentos...por vezes alguns gritos...finos, discretos de quem  mais como dever do que outra coisa qualquer, ensaiou  muitas vezes o grito do som da dor da morte....  todos caminhando lentamente em fila indiana, muito certinha, todos vestidos de negro, vestidos de luto, os que cá ficam a lamentarem o destino dos que se vão, a sussurra,  as crianças atrás, os homens esses...os mais chegados  a carregar o caixão do defunto, entre eles o meu pai....o meu pai alto e forte ....os irmãos altos e fortes....as mulheres mais atrás ao lado das crianças...eu lá atrás ao lado das mulheres..., eu... nove anos...a despedir-me do meu avô ....e o meu avô a partir....  

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