sábado, 21 de janeiro de 2012

Viviamos assim...

Éramos ao todo, quatro cães acorrentados. Tínhamos como dever olhar pela casa dos nossos donos. Vivíamos assim...todo o dia acorrentados. Ao sol e à chuva. A nossa casota era constituída, nem mais nem menos, simplesmente por canas, (tijolo vermelho sem ser pintado ou caiado e cimento), às vezes com sorte um plástico a cobrir a casota, (não vá a chuva cair mais forte nesse dia) e gotejar lá dentro. O chão da casota  era feito de terra solta, e em tempos de inverno gelado, em dias de sorte, palha, palha essa, que não era mudada nem todos os dias, nem todas as semanas, enfim, eu detestava aquela minha vida. 

No verão as moscas picavam-me as orelhas, até fazer feridas! mas como não me podia mexer, mais que um metro de distancia, nada ou quase nada podia evitar, que isso acontecesse. Mas o que mais me dava pena, nesta desgraça completa de ignorância e miséria humana a qual fui submetido, desde que me trouxeram para cá, aos oito meses de idade, era a minha mãe que se encontrava, ela também acorrentada e não muito longe de mim.

A minha mãe era uma cadela bonita com pedigree, a qual tinham dado o nome de Bela, porque era Bela. 
O meu pai nunca soube ao certo quem foi, mas segundo o meu aspecto físico, ou seja o meu focinho de labrador, deve ter sido ele também, cão de raça. Pois na realidade pareço uma mistura de labrador com Dálmata, mas como eu ia contando, ao principio da minha história, cada qual de nós tinha a sua casota e estávamos distribuídos por sítios diferentes no quintal, assim podíamos vigiar a casa (não vá o diabo tece-las) de diferentes ângulos, atrás, à frente e dos lados.

A minha casota, tal como a casota dos meus outros companheiros da desgraça. Tinha sido feita pelo filho mais velho dos meus donos. Eu era o Grande, a minha mãe a Bela, e os outros dois cães rafeiros, o César e o Trovão, que eu não sei bem ao certo, como ali foram parar.
Os meus donos, pessoas do campo já idosas, talvez na casa dos sessenta, com medo de assaltos, e com medo que fugíssemos para a estrada e fossemos atropelados (antes isso que viver assim), usavam-nos como vigilantes e acorrentavam-nos, dia e noite, noite e dia, verão, primavera, outono, inverno, penso, que em quatro anos que ali permaneci fui solto, (podendo andar á roda do quintal) talvez, umas cinquenta vezes.

A tigela onde comíamos, era constituída por um tijolo que tinha uma cavidade profunda no meio, era ai que a minha dona, depositava os restos do almoço ou os restos do jantar todos os dias.  As moscas sobrevoavam o prato, às vezes no verão a comida borbulhava tendo tendência para azedar, sendo o calor muito e as horas de exposição ao sol também,  faziam-na desta forma azedar. No inverno, a chuva essa, caia torrencialmente dentro do tijolo da comida,  ainda me lembro das migas com o grão à superfície a boiar na água. Confesso que detestava aquilo tudo,  tudo aquilo me metia muito nojo e ódio, e a vontade de morder uma perna ou um braço aquele que se aproximasse, crescia de dia para dia. 

Sei que me temiam por ser grande e por rosnar muito. Mas não sou violento, só me atrevi em morder a perna da minha dona uma vez na vida, (e levei logo como antídoto ao crime cometido),  uma varejada na cabeça, e a ameaça de: -hoje não há comida, por seres mau... como se a mim me importasse, ficar um dia sem comer,. Aquela comida a ferver em dias de verão no tijolo azedo. 
-deves ser muito fino,  dizia a velha às vezes, queixando-se dos dias em que me faltava o apetite, e em que eu rosnava um bocadinho, como sinal de aprovação ao comentário. Sim era fino, mas infelizmente tinha que viver ali....

Como os anos iam passando e nada acontecia, eu sentia-me como prisioneiro do meu próprio filme, a apodrecer em vida naquela prisão exterior, preso à minha condição canina de não poder  nada fazer sobre o assunto. então decidi  por mãos ao assunto, tomar medidas e actuar. As hipóteses que tinha de fuga eram escassas. A corrente era grossa e como raramente era solto, pensei que a única e ultima oportunidade seria esperar e tentar escapar na próxima oportunidade que me soltassem.
Ora num dia de Abril desses dias de Abril verdes já com cheiro a fresco e a primavera, onde o sol já espreita e o céu muito azul,  carrega algumas nuvens gordas e muito brancas, e em constante movimento, como num desenho infantil. Nesse dia, chegou numa camioneta a casa dos meus donos, o Senhor Aníbal, homem também já velho que ali ia ás vezes, vender mercearias, (coisa ainda muito típica na província), o senhor Aníbal gostava de mim e eu gostava do senhor Aníbal. Sempre que me via, vinha-me logo fazer festas na cabeça e chamava-me campeão. Sei que muitas vezes me pediu para sua companhia, mas os meus donos, para mal do meu pecados, recusaram o pedido, tendo em conta a necessidade da minha presença em "lhes guardar a casa". 

Assim que vi o senhor Aníbal  na sua camioneta cinzenta enferrujada, pensei para comigo, que se calhar desta vez, (como já tinha acontecido algumas vezes anteriores), ele me iria soltar, claro que isso só poderia acontecer com o acordo dos meus donos, então se isso acontecesse, seria talvez uma das minhas ultimas oportunidades de poder escapar, sei que iria ficar com pena de deixar a minha mãe, mas como nunca, eu e a minha mãe nada podíamos fazer juntos, apenas só nos contemplar um ao outro de longe, (visualizando assim desta forma a desgraça do destino marcado de cada um), o melhor mesmo, seria então a fuga!

O senhor Aníbal estacionou a camioneta. O trovão e o césar começaram logo a ladrar, querendo dar ares de cães muito bem mandados e fieis, que ao mínimo sinal alertam os seus donos da aproximação de alguém ou algo. Os meus donos apareceram logo vindos de dentro da casa,  a minha dona vindo mais à frente trajando  uma bata  de cor castanha floreada, limpando as mãos ao avental, o meu dono logo mais atrás, cajado na mão e boina na cabeça. Aproximaram- se ambos à camioneta do senhor Antunes, compraram o que tinha a comprar, discutindo, entretanto preços e trocando frases feitas tais como:"-a vida tá cara". "não se pode". 

Eu muito perto, ladrando um bocadinho para avivar a alma do senhor Antunes da minha pobre existência, o senhor Antunes  a responder aos meus donos, às perguntas sobre o preço dos alimentos, feitas por estes, e de vez em quando uma frase pequena dirigida a mim: - Ó campeão" dizia  -hoje tás chateado rapaz?" perguntava e acrescentava: " tás a ladrar muito, queres conversa". E eu respondia, ladrando, soltando latidos pequenos e batendo com o rabo em movimentos curtos e rapidos, pois não iria o senhor Antunes mesmo pensar, que eu estava zangado ou furioso, e ter receio de se aproximar mais de mim e ai talvez perder a escassa oportunidade do senhor Antunes pedir para me soltar: "queres conversa?", perguntava, acrescentando, enquanto recebia o dinheiro da venda das mercearias, e eu abanava a cabeça, dando pulos baixos na boa esperança de ele me ir soltar. E assim aconteceu, a pedido do senhor Antunes e com o consentimento dos meus donos fui solto nessa tarde. A minha dona ainda disse: -cuidado, senhor Antunes não vá ele fugir para a estrada! , mas ainda ela não tinha terminado a frase, já eu ia galopando como um cavalo pelo quintal a fora, deixando atrás de mim rabanadas de areia soltas no ar e pegadas fortes, de quem muito rápido corre em caminho da liberdade, correndo, correndo, sempre sem parar até ao outro lado da  maldita estrada, (causadora dos meus muitos anos de cativeiro) correndo até ao outro lado sem parar estrada a fora, pelo lado da berma, sem tempo nem coragem de olhar pra trás, ignorando as buzinelas dos carros, que achavam estranho um cão de raça, com ar abandonado, andar por ali. A ultima imagem que tenho desse dia, foi o o olhar estupefacto dos meus donos e do senhor Antunes, parados e imobilizados pelo choque brutal da minha fuga rápida e veloz!

Nunca mais soube nada da minha mãe, penso que deve ter morrido de velha, acorrentada ao destino que a perseguiu o resto da vida. Hoje já meio velhote, recordo aqui deitado aos pés do meu dono, no tapete verde da sala, ao lado da lareira, ouvindo o barulho da lenha a queimar. Recordo esse dia. Recordo...o carro amarelo limão, que parou a meu lado, para me salvar, que aquando e por falta de forcas , o corpo já não reagia e as patas deixaram de se mover. A língua de fora, expelindo baba.  E como já não podendo correr mais, parei. As crianças lá de dentro do carro, no banco de trás, curiosas a espreitar, desesperadamente, ansiosamente. Pedindo ao pai, pedindo á mãe. -mãe, -pai,  por favor! - é tão lindo! deixem-nos ficar com ele...e foi assim que entrei no carro....

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