quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O Inverno do meu descontentamento

Nos dias curtos e cinzentos de inverno da escandinava, onde o sol raramente brilha e os dias terminam cedo, por volta das quatro da tarde, ás dezanove e dois minutos exactamente da tarde de dezasseis de Janeiro do ano de 2012, lembrei-me de Maia, já fazia algum tempo que a tinha conhecido e como já não a via há imenso tempo desde a ultima vez em que trabalhei como consultora de dependências numa instituição para toxicodependentes. Lembro-me que no meu primeiro dia de trabalho em que cheguei pelas nove da manhã a esse ambulatório aonde teria que trabalhar alguns meses, pensei se na verdade  "aquilo" seria alguma coisa para mim, sempre na minha vida tive dificuldade em descobrir o que realmente gostava de fazer, talvez por gostar de fazer muitas coisas diferentes, e por achar que tinha jeito para muitas coisas mas também por achar que na realidade não tinha muito jeito para coisa alguma!
A chefe da instituição, mais ou menos da minha idade, talvez uns poucos anos mais nova que eu, informou-me logo aquando da minha chegada que a reacção das mulheres em relação a minha pessoa, não iria ser positiva, mas eu como profissional e conhecedora do assunto, teria que levar em conta a vida conflituosa que essas pessoas levavam como tal a falta de auto-confiança que lhes era atribuída no perfil de toxicodependentes, não percebi muito bem o que ela queria dizer com a conversa, e então com os olhos insinuei-lhe que gostava que fosse mais directa, que fosse direita ao assunto, e então a chefe da instituição acrescentou á nossa conversa, que achava que eu tinha bom aspecto físico e que isso provavelmente iria irritar as mulheres, não levei o comentário da chefe como um elogio ao meu aspecto físico, tendo em conta que maioria das pacientes que ali se encontravam, sofriam de todo tipo de problemas físicos e psíquicos, tais como: falta de membros superiores e inferiores, falta de dentes, Anorexia, bulemia, equizemas de pele, obesidade, enfim um leque infinito de todas as doenças existentes no nosso planeta e muito patentes na "tribo dos toxicodependente", ainda á conversa com a minha chefe, respondi-lhe para não se preocupar que se calhar agora ao principio talvez não simpatizassem comigo, mas que depois no decorrer do meu percurso a coisa se iria recompor e que eu iria fazer todo o possível e imaginário para que isso acontecesse, que as coisas terminassem bem e de uma forma positiva.
O meu trabalho no ambulatório consistia em mais coisas práticas do que propriamente em terapias cognitivas ou terapias de grupo, que eu tinha aprendido em todo o percurso do curso, pois ali não havia qualquer tipo tratamento, não havia ninguém para tratar, nem para salvar, e tal como os outros funcionários que ali trabalhavam  diziam: "...daqui só para o cemitério..." sei que isto é humor negro (não sei se escandinavo se não), mas infelizmente a realidade era essa mesma, então tomei como precaução, não me envolver sentimentalmente com ninguém, nem com homens nem com mulheres.(coisa que tinha aprendido no curso como chave de ouro para um bom sucesso profissional).
Tinha que chegar ao trabalho pelas oito da manhã, e já por esta altura se encontrava nas escadas da instituição, que se situava num primeiro andar, alguns pacientes em estado quase mórbido de abstinência, quase vomitando sentavam -se no chão das escadas á espera desesperadamente que abríssemos, alguns acompanhados com cães outros sozinhos e outros em pares de namorados. Antes que abríssemos pelas oito horas e trinta minutos da manhã, nós os funcionários, reuniamo-nos e comentávamos o estado psíquico de cada paciente, inerente ao dia anterior,  o que faríamos nesse dia e as tarefas destinadas a quem e a cada qual, terminada a reunião, eu por vezes acompanhada de algum pedagogo ou enfermeiro, dirigiamo-nos até á cozinha e preparava-mos o pequeno almoço, entretanto se não estava na cozinha a ajudar a preparar o pequeno almoço, estava na sala de enfermagem ao lado a distribuir: medicamentos, seringas, compressas, ou então a segurar na roupa destes pacientes enquanto estes se injectavam, nesta situação eu sempre com os olhos desviados para o outro lado. Terminada a sessão de filme de terror de longa metragem e com a abstinência tirada, dirigiam se á cozinha para tomarem o pequeno almoço.
Maia era uma rapariga alta, podemos mesmo dizer bastante alta, portadora de uns olhos imensamente azuis e com um peso de não mais de quarenta quilos distribuídos numa altura de um metro e oitenta, tal como o seu pai  Maia também era toxicodependente, o que se chama em linguagem técnica herança social. O seu pai encontravas se no momento hospitalizado, o que a preocupava bastante, e ao que parece e por aquilo que dela conheci, Maia tinha uma relação (dentro das circunstancias) muito perto e muito positiva com o seu pai.
 Não sei bem porquê, mas simpatizei logo com ela, não por ter pena de ser toxicodependente e ser anoretica, ou seja em termos técnicos o que se chama (diagnose dupla) mas porque ás vezes entre as pessoas existe uma certa química que nós não podemos explicar e acabamos por gostar mais de uns do que outros.  Para alem de todo o tipo de assuntos práticos na instituição também me foi distribuído a tarefa positiva e agradável de trabalhar num atelier de costura que fazia parte do projecto da instituição, como tinha estudado designe de roupa e sabia costurar, desenhar e fazer moldes, acharam que a tarefa e a responsabilidade do atelier de costura seria minha, essa tarefa consistia em por os pacientes a costurar, ou a fazer qualquer coisa com as mãos, desde arranjos, a cintos, carteiras e bolsas... Maia era das pacientes a qual que mais frequentava o atelier e por isso que mais tempo passava comigo. As vezes tinha dificuldades em  perceber o que ela dizia, porque por ser tão magra, as cordas vocais, traqueia, todo o aparelho respira tório parecia ter sido afectado pela doença, tal como a  sua pele e as suas unhas que na realidade já não existiam,  a pele das suas mãos sofria de equizemas, que cocava constantemente, originando assim feridas, que tentava disfarçar usando luvas.
Tal como eu Maia adorava roupa, então trazia todos os dias algumas pecas de roupa de sua casa entre outras algumas roubadas em lojas, segundo ela, eu tinha que as avaliar ou tentar lhe dar uma ideia com que outra peca ela poderia conjugar essa mesma peca, mas como era excessivamente magra quase toda a sua roupa tinha que ser apertada , então era quase sempre isso que fazíamos as duas juntas no atelier, ora tira daqui ora tira dali e zás! pronto! o tamanho desejado. Sempre lhe dizia que achava que devia se alimentar melhor para ganhar peso, mas Maia tal como muitas outras pessoas que sofrem de distúrbios alimentares, achava que tinha o peso certo para a altura certa , e ganhar peso seria então uma coisa desnecessária quase fútil aos olhos de Maia.  Eu nunca insistia em nada com ela e achava do meu ponto de vista que o melhor era ser feliz, no pouco tempo de vida que eu achava que lhe restava.
Num desses dias de inverno de neve, onde demorei mais que uma hora para fazer um trajecto de seis quilómetros de bicicleta, cheguei á instituição mais morta que viva com a roupa toda molhada e o cabelo muito rígido e todo branco da neve, como tinha chegado atrasada a Maia já lá estava á minha espera no atelier, mal entrei começou logo por perguntar muito aflita aonde é que eu tinha estado e porque é que tinha chegado tão atrasada, depois do meu breve comentário sobre a neve e a dificuldade em andar de bicicleta, Maia entregou-me um embrulho floreado decorado com fitas dourada, é para ti, disse sorrindo  e acrescentou que eu tinha sido a pessoa que ela mais tinha gostado que ali tinha trabalhado, dei-lhe um abraço (coisa muito típica na escandinava) e disse-lhe obrigado, desembrulhei o embrulho que consistia num vestido de verão verde, que era da Maia mas que ela já não vestia por lhe ficar grande." muito grande mesmo". Acrescentou....
Passado uns meses de ter terminado esse trabalho e estar farta de não conseguir emprego em lado nenhum, lembrei-me de dirigi-me a esse ambulatório, quase convicta que se falasse com a chefe da instituição, ela me arranjaria talvez emprego outra vez ali, á conversa com a chefe sobre a dificuldade nos dias de hoje de conseguir emprego, fui também perguntando, já no fim da conversa, pelo paradeiro de alguns dos pacientes que conheci e que mais contacto mantive, quando lhe perguntei pela Maia, a minha ex chefe disse-me com um ar triste mas muito cool, (típico de pessoas que lidam com a morte no dia a dia) que a Maia tinha morrido, fiquei triste como é óbvio e de vez em quando penso nela. Hoje no dia dezasseis de Janeiro do ano 2012 fez precisamente um ano e meio que a Maia me ofereceu o vestido verde de verão (lembro-me da data, porque um amigo meu faz anos nesse dia) e ás vinte e duas horas da noite a porta do meu guarda fato abriu se lentamente (excesso de roupa, penso...),  o vestido verde de verão que a Maia me tinha oferecido há precisamente um ano e meio atrás, caiu do armário entre várias outras pecas de roupa. Não sou supersticiosa, podemos dizer que me autointitulo por céptica, mas levantei o vestido, coloquei-o encostado a mim e com a lágrima ao canto do olho, dobrei-o bem dobrado e guardei-o para todo o sempre numa gaveta mágica...

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