terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O Serrano.

O serrano era pai de cinco filhos e duas filhas, e vivia numa aldeia na serra, uma aldeia pequena e sombria  feita de pedra de xisto.
A família do serrano já vivia ali há muitas gerações. Pois já a mãe, o pai e os avós do serrano ali tinham nascido. A aldeia onde o serrano vivia era constituída nem mais nem menos, por umas vinte e poucas casas e por alguns palheiros, palheiros esses, que geralmente eram juntos ás casas. As casas eram todas ou quase todas juntas umas ás outras. Pequenas na sua maioria e constituídas por uma cozinha grande com  forno e um quarto ou dois que se situavam ao lado da cozinha. Abaixo da casa,  ficavam as lojas, (lojas em linguagem corrente), eram considerados os compartimentos que serviam de abrigo aos animais que ali dormiam, aquecendo assim as casas nas noites frias de inverno.
A serra era fria, quase gelada. No inverno, as mulheres quando iam lavar a roupa ao tanque, que se situava na eira, partiam o gelo podendo só assim desta forma obter água que usavam para lavar roupa e outras coisas necessárias ao dia a dia na serra. Nessa altura, (estamos a falar do ano de mil novecentos e trinta e seis) o vestuário dos homens, era simples e rudimentar. Constituído muitas vezes por uma capa feita de palha, que usavam por cima da samarra, protegendo-os assim da geada, do frio e do vento. As mulheres, essas, tal como os homens, quase sempre vestidas de negro, usavam quase todas, independente da idade, um lenço na cabeça e um xaile a cobrir-lhes a roupa. A vida na serra era difícil, porque a montanha era íngreme agreste e rochosa,  não havia transporte, e os acessos eram complicados, pois todos os caminhos eram quase todos cobertos por pedra ou terra batida. As crianças para se deslocarem á escola que se situava numa aldeia próxima, tinham que caminhar todos os dias, uma média de seis quilómetros.
Em sábados de manhã, os serranos desciam a serra em grupos de seis ou dez homens, desciam a serra até á vila que se situava a uns quinze quilómetros de distancia da aldeia, ali iam vender alguns dos legumes por eles plantados e por vezes, animais, cabras, galinhas e borregos. Terminada a venda, quase sempre se dirigiam a uma tasca, e por ali ficavam bebendo, rindo, cantando até o dia escurecer. Os serranos não eram muito populares entre os residentes da vila, pois estes achavam-nos rudes, sujos, e incivilizados e sempre prontos para desacates e conflitos. O serrano era um homem forte e alto, de feicões rudes e traços rasgados, nariz grande, cabelo cor de avelã, olhos azuis celestes e faces rosadas pelo álcool e pelo frio. Homem de poucas palavras, usando sempre frases curtas geralmente em tons imperativos, tendo assim todos ou quase todos receio dele. O serrano era um pequeno rei no seu pequeno condado, o seu condado era a aldeia que o tinha visto nascer e crescer. Os súbitos, os familiares tais como: os seus irmãos e primos que também lá viviam. Por ser grande  forte e dono de quase todas as casas e terrenos na serra, o serrano era também casado com a mulher mais bonita da aldeia, a Celeste. Celeste era uma mulher no principio dos trinta, apesar de ser mãe de sete filhos, continuava esguia e bela, possuidora de uma tez clara, cabelo negro e olhos cinzentos. Celeste era assim desta forma cobiçada por todos os homens da aldeia, pois era considerada por todos, para alem de sua  beleza (que todos cobiçavam incluindo também as mulheres) mulher de grande coração e bondade. Celeste era então, bela, calma, e generosa. Com todos estes atributos e num meio de uma hierarquia provincial fechada, era normal que o serrano cuidasse de sua mulher melhor que cuidava de si próprio, preocupava-se com que nada lhe faltasse, estando sempre atencioso ás suas necessidades e comunicando sempre com esta em linguagem de quem ama, achando que este ser amado lhe era precioso e impriscindivel á sua existência. O amor do serrano por Celeste era tão grande que por vezes este sentia-se pequeno, rude e incivilizado em relação a esta.
O serrano a mulher e os filhos viviam na casa maior da aldeia, que ficava logo á entrada da aldeia no alto dum cume. Era uma casa grande e espaçosa, também esta feita de xisto mas caiada, com vista para todas as outras  serras e para a aldeia. A casa era constituída por cinco quartos e uma sala com forno, por baixo ficavam as lojas, onde os animais viviam. Durante o dia, a mulher do serrano passeava as cabras, as vezes sozinha, outras vezes com alguns dos filhos mais pequenos, pois as tarefas mais dificies como: cortar lenha e lavrar o campo eram destinadas sempre aos filhos mais velhos. O serrano lavrava as terras, cuidava dos terrenos e assim como era  generoso com a sua esposa também era generoso com os seus filhos. Nunca lhes gritava, sempre sendo atencioso que nada lhes faltasse. Isto não era visto como coisa muito "normal" aos olhos dos outros, tendo em conta que o serrano, era conhecido por ser homem de personalidade rude, dominante e imperativa.
Ora num dia de verão do ano de mil novecentos e trinta e seis, chegou á aldeia um homem de aspecto invulgar. Este homem trajava um  fato casaco de cor castanha, usava óculos redondos e tinha cabelo negro semi comprido cortado até debaixo das orelhas. Todos na aldeia ficaram intrigados com esta presença e quiseram desta forma  todos logo saber quem seria aquele individuo e o que faria ali na aldeia,. Veio-se a saber que aquele individuo era o filho de um individuo que tinha sido professor há muito tempo atrás, na aldeia onde as crianças iam á escola, e que se encontrava ali porque queria escrever um livro, pensava. Segundo as suas palavras. Que a serra o poderia inspirar e lhe abrir horizontes para o livro que estava a escrever.O serrano orgulhoso por ser ele o mais rico da aldeia e possuidor  também da casa maior, logo convidou o escritor a permanecer em sua casa, oferecendo-lhe todos os serviços gratuitos como: casa, comida e roupa lavada, (pois não é todos os dias que um homem tem um escritor como hospede em sua casa, pensava). Assim aconteceu o filho do professor aceitou a oferta e um dos filhos do serrano, mostrou-lhe o quarto onde poderia ficar.
O escritor já estava a viver na casa do serrano há mais de um mês, gostava de ali estar, gostava do quarto onde ficava, que tinha vista para a serra, gostava da família do serrano e gostava das gentes da serra. Sendo uma pessoa que nunca ou quase nunca tinha tido contacto com a província(sempre tinha vivido em Coimbra), o escritor achava que aquela experiência que ele estava a viver, era única!, e também poderia vir a ser muito enriquecedora. Os dias passava-os assim: ora estava no quarto a escrever, ora dava passeios pela serra contemplando a natureza selvagem e agreste que o rodeava, suspirando mares de felicidade.O escritor achava a mulher do serrano, bela, inteligente e doce, sentia-se fascinada por esta mulher, e não compreendia que uma mulher como esta pudesse ali viver sendo submetida aquela situação de mãe de tantos filhos, por isso evitava quase sempre assim de lhe dirigir a palavra, e o mesmo sucedia com a mulher do serrano, esta sentia a mesma atracão pelo escritor, admirava-lhe a sabedoria das suas palavras, a engenharia das suas escritas, pois não sabia ler nem escrever, a delicadeza dos seus gestos, a sua sensatez e as suas mãos delicadas de homem que não lida com o campo. Celeste pensava que a vida a tinha enganado, que um homem como o escritor, é que ela devia ter casado. Assim, seria agora ela também uma senhora, talvez vivesse em Coimbra, e talvez fosse dona de alguma retrosaria. Os sentimentos dos dois eram assim desta forma reciprocos. Mas nem nunca o escritor tinha ousado abordar a mulher do serrano sobre a atracão que estava lhe causava, nem a mulher do serrano o tinha abordado sobre o assunto. Então no dia a dia vivam a mentira difícil de nada sentirem um pelo outro porque ambos temiam essa paixão que os sufocava e lhes mutilava as palavras aquando a sós. O serrano, esse, nada desconfiava. Sabia que a sua mulher era bela e cobiçada por muitos, mas não poderia desconfiar que um ilustre escritor e senhor da cidade pudesse ele também cobiçar Celeste que não passava de uma simples serrana lavradora e mãe de sete filhos. Ora num sábado de manha, nessas manhas em que o serrano num grupo de dez homens descia a serra até á vila para vender algumas cabras que a ele lhe tinham sido encomendadas.  Celeste e o escritor ficaram pela primeira vez a sós na casa. Os filhos do serrano encontravam-se na aldeia dispersos por sítios diferentes, alguns em casa de vizinhos brincando com outras crianças, outros a pastar cabras, outros a lavrar a horta, e outros a apanhar e a juntar lenha.
Já havia quase dois meses que o escritor vivia na casa do serrano e já havia quase dois meses que o escritor vivia aquela paixão cega de quem se sente atraído mas que está proibido de amar. Sendo os olhos o espelho da alma , não foram então necessárias palavras, para que o escritor e a mulher do serrano dissessem, naquela manha de sábado. O escritor tomou coragem e nervosamente aproximou-se de Celeste e gentilmente acariciou-lhe a face, olharam-se os dois olhos nos olhos durante muito tempo, e pela primeira vez sem emitirem palavras a mulher do serrano acariciou a mão do escritor que lhe acariciava a fase, revelando assim que também ela era reciproca nesse amor, beijaram-se num beijo longo e ardente, beijaram-se como se fosse a primeira e ultima vez, não temendo nada nem ninguém,  abstraindo-se simplesmente de tudo e todos e não ligando ao suposto facto de talvez um dos filhos do serrano e de Celeste, inesperadamente pudesse entrar em casa, ou de serem constatados por um ou outro vizinho curioso que por ali passasse.
As vezes em certos momentos na vida das pessoas a intuição pode falar muito alto, e nesse dia de sábado de manhã do ano de mil novecentos e trinta e seis a intuição do serrano falou alto demais. Enquanto este ia descendo a serra em grupo de dez homens e estando a uns dois quilómetros distante de sua casa. Dominado pela intuição que algo de errado se passava, o serrano voltou-se para trás e comentou com os outros homens que o acompanhavam que não estava a se sentir muito bem, que iria voltar para casa e se estes não se importavam de lhes vender as cabras. Assim feito e dito o serrano deu meia volta e decidiu voltar para trás em direcção á sua casa. O medo dominava-lhe os passos e a adrenalina secava-lhe a garganta. Enquanto caminhava em passos lentos mas decididos. Como quem teme o pior, como quem teme a verdade. O serrano falava consigo próprio "Coisas da tua cabeça" Pensava. "Tá parvo homem",  continuava a pensar. Como a modos de se tranquilizar a ele próprio.
E assim foi o serrano entrou em casa com o coração a bater  forte e com a boca seca de medo e de ansiedade. Deparou com Celeste que estava deitada na mesa castanha rústica e longa da cozinha. Viu o corpo semi nu e magro do escritor entrelaçado no corpo da sua mulher. Ambos estavam  seminus e beijavam-se, emitindo gemidos de amor e de prazer.
E foi num ápice que naquele ano de mil novecentos e trinta e seis numa aldeia da serra da Lousã que o serrano pegou na catana que tinha escondida entre telhas e barrotes debaixo do telhado da cozinha. Aquando louco e cego de ciumes, esquartejou até á morte, ambos o escritor e a mulher, vindo ele próprio a morrer assassinado, alguns anos mais tarde numa prisão!

Sem comentários:

Enviar um comentário